Uma
reverência às várias faces de um fingidor
Tão escasso é o espaço para
a poesia em nossos dias, arte que entre os modernistas atingiu altíssima
elaboração estética antes de desconstruções mais radicais ao longo do século XX,
que ouvir generosos trechos da obra de Fernando Pessoa é um prazer estético por
si só significativo. Falar da vastidão da obra do poeta português é pouco
quando são muitas obras em uma; cada qual com seus traços formais, éticos, cosmológicos
e subjetivos singulares. Mares profundos que apontam na superfície da costura
dramatúrgica do monólogo “As Pessoas de Minha Pessoa”, de Valentim Schmoeler.
O veterano ator, pioneiro
formador do teatro itajaiense, reverencia a poesia e a personalidade de Pessoa
e seus heterônimos. Centrado nos versos, o espetáculo afasta-se do formato
recital para investir na interpretação – tantos da palavra poética quanto dos
personagens Fernando, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro. Desse
modo, sustenta-se nas convenções teatrais e num registro de representação
mimético, encaixado na forma dramática tradicional, embora tensionada pelo
lirismo literário.
A construção do(s)
personagem(ns) faz-se sobretudo pela imitação cuidadosa do sotaque português e
pela corporeidade austera de um senhor do século passado. Apesar da opção
mimética, o Pessoa de Valentim personifica uma figura distinta do imaginário
comum produzido pelos registros que se tem do poeta, morto precocemente aos 47
anos. Um homem mais maduro – nesse sentido, talvez, misto das idades de seus
heterônimos e da pessoa de Valentim –, de modos cerimoniosos, cujas
alternâncias de personalidade são marcadas por variações no figurino e de
tonalidade do humor, mantendo sempre um tom passadista, acentuado pela
construção do espaço cênico como uma síntese realista do gabinete do escritor.
A ação é reduzida, visto que
prevalece a alusão pela palavra – é desta que hão de vir as imagens impregnadas
nos poemas, pelo apelo à razão e à emoção. Valentim prima pelo bem dizer do
texto, transformando versos líricos ou narrativos em monólogos e diálogos
dramáticos, com uma forte carga interpretativa acompanhada do certo didatismo, não
somente nas apresentações dos heterônimos, mas também nas entonações explicativas
e ilustrativas dos significados expressos pelas palavras. A direção econômica
de Rafael Orsi de Melo deixa espaço para a centralidade da atuação; e rege todo
o espetáculo uma lógica ilustrativa, pela qual as camadas expressivas
reiteram-se, especialmente notável na gestualidade e na entonação do ator tanto
quanto na música de fundo.
Por vezes, sente-se também a
literalidade na interpretação de alguns versos cujos sentidos deslizam ambíguos
numa leitura subjetiva. A ironia presente em poemas como “Todas as cartas de
amor são ridículas” é substituída então por uma dramatização enfática, exaltada.
Num escrito como o “Poema em linha reta (“Nunca conheci quem tivesse levado
porrada”....), esta voltagem representativa encontra o tom para conferir
fragilidade àquele homem em cena. As personalidades dos heterônimos misturam-se
aos poemas, interferindo em suas tonalidades. Álvaro de Campos talvez seja o
mais afetado por essa operação, pois que a acidez sagaz de seu olhar sobre o
mundo recobre-se do mau-humor que o caracteriza como personagem.
Heterônimos adentram o
pequeno corredor entre as plateias numa ordenação linear de quem inicia o
espectador na poesia do mestre português. Para isso, busca uma relação cordial
com o público. A somatória de versos atribui coerência narrativa às inter-relações
semânticas, de modo que a passagem de um a outro é feita coloquialmente – mesmo
que, na dramatização de poemas inteiros tornados cenas, as citações-aforismo, tal
qual “tudo vale a pena se a alma não é pequena” (que se emancipou dos outros versos
sobre a travessia marítima), destoem pela excessiva repetição, que os faz refrão
imediatamente reconhecível. Com a força e a superficialidade dessa condição.
Representar um sujeito com a
genialidade expressiva de Fernando Pessoa costuma colocar atores de uma
vertente mais clássica em posição de reverência. Não é diferente em “A Pessoa
de Minha Pessoa”. A liberdade de apropriação e reinvenção vai a contrapelo da deferência;
enquanto esta define as fronteiras de uma representação de anseios realistas.
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