Zooteatralidade
De
Esopo a Charles Darwin, estendendo a Franz Kafka e George Orwell, a condição
humana encontra na animalidade espelhamentos e contrastes que muito interessam
aos campos da investigação e da criação em arte, filosofia e ciência. O espetáculo
do coletivo mineiro Pigmalião Escultura Que Mexe explora esse terreno de
maneira exasperante.
Alude
à estirpe do autodeclarado “teatro desagradável” de Nelson Rodrigues, guardadas
as proporções de que o drama aqui assenta sobre outros desejos: o das formas
animadas. O boneco e a irracionalidade tocam feridas familiares ao bicho homem
e ungem uma espécie de zooteatralidade para tempos de crise de
representatividade que, sabe-se, começa dentro de casa e ganha o espaço
público.
A
transversalidade artes cênicas/artes visuais coloca a família disfuncional em
outro patamar de relação com o espectador que não o mero código psicológico. As
situações de abuso, a hipertrofia dos vínculos e a violenta codependência desde
a primeira infância constituem, por si só, um material emocionalmente
explosivo.
O quadro de todos juntos vai
a fundo nesses subterrâneos e se deixa acompanhar por arquiteturas visuais e
sonoras indicativas de como o teatro de formas animadas tem evoluído em
abordagens para o público adulto em certas praças brasileiras, caso da Belo
Horizonte natal do Pigmalião, a mesma do Giramundo, núcleo paradigmático da
pesquisa com bonecos em mais de quatro décadas.
A
fisionomia suína realista é a tônica nos bonecos e nas máscaras em parte dos
atores. Em alguns deles, a manipulação direta é uma extensão do próprio corpo,
fusão que lembra a figura mitológica do minotauro: em vez da cabeça de touro,
temos a cabeça de porco e o tronco confeccionados. Da cintura para baixo, carne
e osso.
Apesar
de fonte de alimento apreciada em muitas mesas, o porco é comumente associado à
imagem negativa da sujeira, do mau-caratismo. Em cena, o instinto selvagem que
pauta a relação do macho, da fêmea, das crias e dos agregados está longe de
digestível. Sem a âncora da palavra, o espectador é instigado a partir das
sensações pictóricas e sonoras. Não há estrutura cenográfica, mas um desvanecer
em penumbras e contraluz passíveis do lugar do inconsciente.
É
um espanto que o coletivo ignore em sua ficha técnica o artista ou os artistas
responsáveis pelo desenho sonoro poderoso na indução ao raciocino da fala por
meio de ruídos e grunhidos, ao que parece programados para o tempo da ação dos
manipuladores e, às vezes, incidentais. A sonoridade onisciente – algum grau de
silêncio ajudaria a processar o dilacerar constante – corrobora tendência do
roteiro a redundar sequências como o ato de amamentar; o atrito pai/filho,
mãe/filha; e o espocar do flash da máquina fotográfica simulado pela iluminação.
Plena
em conteúdos arquetípicos, ímãs primais, a dramaturgia não-verbal de Eduardo
Felix (codiretor da obra com Igor Godinho) atinge seus melhores momentos quando
lança mão de percursos e quebras que transcendem os níveis patológicos expostos.
Afinal, o que fazer depois de emergir os desvios dos animais demasiado humanos desse
clã? Felizmente, não há saídas morais ou prejulgamento na elaboração ficcional.
Constata-se e celebra-se a dança das linguagens sem prescrição.
Moram
lá nos interstícios da autofagia e da visão da mulher como máquina procriadora
– sob a complacência secular das sociedades matriarcais – o pensamento estético
desestabilizador que o Pigmalião produz. Embrião de uma cena curta (15 minutos)
intitulada O quadro de uma família
(2013), o espetáculo O quadro de todos
juntos (2014) exemplifica o interesse do coletivo por caminhos
desbravadores em oito anos de trabalho e pesquisa.
Em
tempo: na mitologia grega, o rei Pigmalião é um escultor exímio cujo amor por
uma de suas criações, Galateia, convenceu a deusa Afrodite a atender ao seu
pedido e dar vida à mulher outrora de marfim com quem ele finalmente se casou e
teve dois filhos. Ou pode ser lido também como o movediço terreno da
idealização... O septeto da criação em análise manipula os bonecos com um
registro que pode dar a impressão de “grosso”, numa passagem ou outra, mas isso
deve estar correlacionado à imperfeição como estratégia, dadas as distorções
vasculhadas.
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