Sobre estímulos contagiantes e rarefeitos
A certa altura de "Máquina de Dar Certo", da Cia.
Bruta, a vontade é de fazer parte do experimento. A trilha sonora com versões
dançantes de músicas como "I Put a Spell on You", "I Feel
Good" e "Daddy Cool" contagia: os corpos na plateia sentem o
estímulo sonoro e cinético dos movimentos dos atores em coreografias coletivas
no melhor estilo Michael Jackson em "Beat It". Entre o musical e a
balada, sob luzes coloridas cambiantes, o palco é lugar de diversão.
Mas quem são aqueles homens e mulheres numerados e a agir
em grupo como ovelhas num rebanho? A voz feminina em off refere-se a um
experimento, outros indícios da encenação sugerem o confinamento e a
performance para uma plateia fora, mas é do campo extracênico da sinopse que
vem a informação de que a dramaturgia inspira-se nas pesquisas comportamentais
de Frederic Skinner sobre o condicionamento humano a partir de estímulos e
recompensas. Em tempos de reality show, o experimento com humanos aponta para a
espetacularização da vida e a busca pelo reconhecimento atribuído pelo olhar do
outro. Um mecanismo fechado destinado a provar uma tese – uma caixa de Skinner.
Sem essa contextualização extracênica, contudo, o olhar do
espectador tenta atribuir sentido à aglomeração de desconhecidos que cumprem
ações segundo uma dinâmica própria direcionada para a padronização homogênea
das condutas ditada por fatores externos indecodificáveis. A tensão
estabelecida dá-se entre fazer parte do todo sem nele desaparecer e destacar-se
pelo desempenho (ou pela vaidade) sem escapar do padrão, isto é, sem tornar-se
a ovelha desgarrada a ser punida pela voz superior.
Algo se passa no nível do subconsciente sem vir à tona em
cena. Aponta para um conflito entre a pré-programação e as manifestações do
desejo, estas mesmas que devem ser controladas pela lógica do experimento e que
suscitam alarmes sonoros quando se libertam. A música entra como disparadora
dos condicionamentos, embora mobilize sempre algo a mais por sua força de
afetação dos corpos. Ou seria justamente por essa capacidade de afetação – de
ditar ritmos e estados emocionais – que a música os
condiciona? O cantar de "Je Ne Regrette a Rien"
evidencia essa contradição como uma canção que entra fora de hora para a
expressão subjetiva de uma das participantes, rompendo com a norma.
É cabível dizer que, na rotina do experimento, esses homens
e mulheres não vivem, performam. O olhar de fora está presumido em cada ação –
seja o do condutor do experimento ou o da plateia ficcional análoga à real,
embora nenhum desses como uma alteridade efetiva. As relações extracênicas são
dessaturadas tanto quanto as intracênicas: a regra na contracena das figuras é
a impessoalidade, aquela tensão já referida do ser grupo em competição
individualista, contrária à verdadeira troca intersubjetiva.
Em outras palavras, emana da cena um tom blasé: a
sensibilidade embotada pelo excesso de estímulos, a apatia por ter esgotado
todas as possibilidades, o tédio sincero ou afetado. A relação dessas figuras
com os espectadores é distanciada, resultado da fria impessoalidade que não
favorece conexões emotivas e dá acesso nunca ao ser daquelas pessoas, somente
às aparências. A exceção é a personagem da atriz peruana Marba Goicochea, cuja
sensibilidade se excede.
Esse indecifrável jogo com o espectador nem o coloca em
questão a ponto de expor a crueldade do lugar do observador nem permite uma
identificação maior com os condicionamentos perpetrados em cena. Faz-se
confronto mudo. É daí que surge aquele desejo expresso inicialmente de tomar
parte do experimento, de sentir no corpo as pressões dos estímulos – o que não
implicaria necessariamente uma participação direta.
Distinto da clareza explicativa de “Em Respeito a Dor”
tanto quanto da contundência do discurso performativo de “Esse Corpo Meu” –
espetáculos também apresentados no IV Festival Nacional de Teatro Toni Cunha e
com os quais partilha o afastamento do modelo dramático em direção a formas
livres de predefinições –, “Máquina de Dar Certo” é um experimento cênico rarefeito que deixa
entrever a estranheza da coletividade humana.
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