A
falta que a alteridade faz
Valentim
Schmoeler é Fernando Pessoa, o trio de heterônimos do poeta e ele mesmo,
Valentim Schmoeler. A despersonalização dramática que o escritor português concebeu
de modo genial para deslocar-se das ideias, sentimentos e emoções do outro,
sobretudo em Alberto Caeiro, tem pouco relevo em As Pessoas de Minha Pessoa. O ator não recua da sua personalidade artística
em franca mitificação do autor português, abdicando de maiores ambições formais
ao escolher as artes cênicas como expressão desse material poético.
Fica
evidente o recurso à palavra como veículo seminal dos estados de alma, o
caráter devocional. No entanto, as paisagens vão se desbotando porque não
encontram a força correspondente nas especificidades do teatro e sua margem
infinita de invenção.
Certa
vez, em nota sobre a heteronomia, Pessoa afirmou: “Há em nós um espaço interior
onde a matéria da nossa vida física se agita”. Esse rumor não trasborda em cena
enquanto linguagem.
Quando
algum intento estético se insinua, é acanhado, o verbo se impõe. A direção de
Rafael Orsi de Melo serve à mesma convicção. Enfeixa sobre o texto um tom
absoluto que torna tudo o mais periférico. A luz e a trilha ilustrativas são
exemplos da falta de autonomia.
O
tratamento realista insiste na reprodutibilidade de época dos figurinos, móveis
e até da língua portuguesa mãe. Nada que escape ao imaginário identificável,
inclusive na hora de reunir as criações mais célebres dos heterônimos em
questão.
Talvez
o formato ideal para essa experiência fosse a declamação direta de Schmoeler. A
função pedagógica em difundir a arte do “fingidor”. E não o pretexto de encenar
uma obra com as perspectivas lírica, épica, dramática e afins na sincera saudação
a Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, conforme a ordem de entrada no
roteiro antecedida pelo prólogo com a figura de Pessoa em si.
Na
semiarena adaptada ao palco, com o público sentado ao redor, a atmosfera
intimista, o suor no rosto e os olhos marejados desse veterano do ofício comunicam
um ser apaixonado pelas artes literárias e cênicas (à frente da Bagagem Cênica
Cia. de Teatro). Ao mesmo tempo, a proximidade expõe o quanto a obsessão pela fidelidade
o distancia de uma das naturezas-chave da obra pessoana que é também a de
experimentar.
Com
a impossibilidade de confrontar algum nível de alteridade na visita à obra do
escritor que se deixou imortalizar por ela, o espectador que não é de Itajaí
consola-se com a oportunidade de conhecer o personagem de si que é Valentim
Schmoeler ao tomar o poeta pelas mãos e bebericar uma taça de vinho devidamente
acompanhado por copo d’água ao longo da apresentação.
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