quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Critica - Esse Corpo Meu? por Valmir Santos

Sampleando desejos


A neutralização do corpo é uma das constantes no teatro pós-dramático. Ele

não modula esforço por linhas de emoção ou de identificação. Os atores
Denise da Luz e Max Reinert seguem essa percepção à risca em Esse corpo
meu? (2014), da Téspis Cia. de Teatro, de Itajaí. Adicionam fortes ingredientes
da ação performativa para desconstruir a ilusão cênica e criticar a fixação
biológica de gênero, como se as genitálias presumissem o desejo.

Seus corpos-manequins são suportes para samplear o gesto, a vestimenta, a
atitude, o estereótipo. Desfilam no palco desvios e deslizamentos do masculino
e do feminino com variantes para as transgeneridades. 

Na criação colaborativa com a argentina Periplo Compañía Teatral – a direção
é de Diego Cazabat –, a partitura física estiliza a glamorização da vida e
provoca estranhamentos nos papeis sociais do homem e da mulher, ruídos
representacionais a ver com a pele que cada um habita.

O texto-pensamento flutua em voz off sobre a dança dos corpos de Reinert e
Denise, que transitam diálogos não-verbais e olhares que dizem muito. A fala
gravada funde-se à paisagem sonora desenhada por Hedra Rockenbach,
instigando uma dramaturgia que abre paralelos ou surte efeito direto.

A dupla atira-se de peito aberto. Seus corpos-narradores frequentemente vêm
do fundo para a boca de cena. A frontalidade desenha como que um corredor-
passarela em direção ao público. Também ao fundo, dois painéis lado a lado,
de pé-direito alto, são os respectivos guarda-roupas. Atrás de cada um deles
Denise e Reinert providenciam as mutações.

A pesquisa da coprodução encontrou níveis sofisticados de associação
trabalhando com um material difícil de ser processado. Samplear significa
montar. Não bastasse o campo de suas culturas em cruze, as duas
companhias se permitiram contextualizações e relativizações históricas,
econômicas e antropológicas sutilmente sinalizadas em objetos, adereços e
figurinos, ou assumidamente viscerais nos corpos convulsos ou estatelados.

Afinal, estamos diante de diferentes níveis de violência na sociedade, como
aquela exercida particularmente sobre o corpo da mulher, do cala boca
machista ao fetichismo publicitário e cosmético. 

As miniaturas de um carro e de uma boneca mimetizam infâncias emolduradas
pelo tempo. Em alguma medida elas eram descondicionadas pela ternura
acenada no desfecho.

São imagens políticas que ampliam horizontes e refutam as agendas
conservadoras sobre as normatizações da sexualidade, desculpa para o
preconceito.

Entre chegar a esse raciocínio e transpô-lo à cena a Téspis e a Periplo,

companheiras de intercâmbio desde 2007, conseguiram friccionar
heterogeneidades também artísticas. A terceira via é o que Esse corpo meu?
mostra equilibrando-se sobre o fio da navalha. Risco superado até durante a
apresentação para uma plateia lotada, sobretudo, por estudantes do ensino
médio. Apesar de um ou outro espectador incauto, o público em geral fruiu uma
obra artística inquietante, além do que é um alento notar a floração adolescente
tolerando as diferenças.

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