Uma
estética anódina para as sombras do sentir
À primeira vista, a cena
armada pela Karma Cia. de Teatro, de Itajaí, no espetáculo “Em Respeito à Dor”
remete às experiências que vêm sendo praticadas nos últimos três ou quatro anos
no Núcleo de Dramaturgia do Sesi-PR, em Curitiba, sob a orientação do encenador
Roberto Alvim. Espectros transumanos da fixa luz fria, do palco sob penumbra, do
registro de atuação pouco emocional. Mas o território pelo qual trafega o
diretor Mauro Filho é distinto, o da desumanização dos seres num contexto de
elogio máximo à produtividade e à felicidade plena, este unicórnio pós-moderno.
Em outras palavras:
dessubjetivação. Quem bem escreveu sobre o assunto foi o filósofo italiano
Giorgio Agamben, para o qual os dispositivos atuantes no mundo contemporâneo
ocasionam a dessubjetivação dos sujeitos. Dispositivos seriam “qualquer coisa
que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar,
interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões
e os discursos dos seres viventes[1]”, ou seja, desde prisões
às escolas, da filosofia à linguagem, da caneta ao computador, à televisão, ao
smartphone. Eles produziriam sujeitos por um processo de assujeitamento, de
modo que o dispositivo seria uma máquina de governo produtora de subjetivação.
Na atual fase do capitalismo, porém, o processo já não corresponde a nenhuma
subjetivação real. A ação dos dispositivos é de dessubjetivação.
Este desvio filosófico traça
o pano de fundo dos questionamentos existenciais contidos na dramaturgia
colaborativa de “Em Respeito à Dor”. O experimento cênico sobrepõe camadas de
verborragia e esforço físico para compor uma metáfora sobre o desgaste
emocional e energético que é viver numa sociedade que condena – invisibiliza, expulsa,
excomunga – qualquer manifestação de sofrimento (como o luto) por seu caráter
improdutivo. Novamente cabe a referência ao estudo de Jonathan Crary[2], para quem o sono é o
último reduto contra o capitalismo, por sua absoluta improdutividade – e,
também por isso, o mais novo alvo.
O tratamento dramatúrgico textual
dessa matéria faz-se por uma narrativa fissurada, reiterativa e não linear,
cujos avanços e recuos operam por redundância, aproximando testemunhos de
fracasso de Joãozinho (figura ficcional “desertora” da cruzada pela felicidade)
a lições para o bem-viver, contidas em frases como “cuidei do meu corpo,
esqueci de cuidar da minha alma” ou “me dei o direito de ser egoísta –
recomendo”. As ações performáticas, como empurrar um bloco, debater-se, cair, inflar
e soltar balões, contrastam a esse tom explicativo um diapasão mais sugestivo, em
que a potência poética se sintetiza na forma de imagens simbólicas.
O peso do mundo – de si e do
outro – já não é efeito de causas reconhecíveis;, descolou-se delas para
tornar-se objeto concreto, dado a priori, que se manifesta no suor e no grito. As
palavras sobram quando se tenta dar sentido à falta de sentido, mesmo como jogo
de linguagem. Mas o paradoxo maior arquitetado na proposição cênica é a
anodinia com a qual se problematiza o bloqueio da subjetividade e dos
sentimentos humanos em sua diversidade de tonalidades. Pesa sobre a cena uma
sobriedade estética expressa na frieza da luz sobre o espaço vazio, na
uniformização dos figurinos e das ações, nas cores cinzentas, no automatismo
dos corpos, na economia de expressões faciais, na sensibilidade maquínica. Eis
a crueldade-moinho de um mundo sem sentido onde nem se pode sentir.
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