Sísifos rebelados
Um
espectador levantou na segunda fila, deu as costas, pisou o corredor e rumou à
saída quando a atriz Pietra Garcia defendia, por meio de uma das figuras do
espetáculo Em respeito à dor, o
direito de poder fazer tudo que lhe dá na telha, inclusive desistir... Não se
sabe se o homem desistiu. Ele pode ter se retirado por algum motivo e retornado
à sala, fileiras atrás. O primeiro trabalho da Karma Cia. de Teatro, em dois
anos de trajetória, indica pressupostos de um pensamento artístico provocador.
Não há vez para o lugar-comum da ditadura do entretenimento, do conteúdo
inofensivo, da subserviência ao aplauso.
O
trio que está em cena expressa ambições mobilizadoras, sobretudo quando manifestadas
por jovens dispostos a problematizar sua prática, seu pensamento, sua época e
seu mundo para além das querelas provincianas ou tradicionalistas.
Pietra
contracena com Leandro Cardoso e com o também dramaturgo e diretor Mauro Filho.
De largada, os movimentos e as ações corporais reafirmam consciência de
espacialização correlata à carga existencialista do texto e à sobriedade da
encenação. Gestos, entonações e cores acinzentadas amparam os questionamentos e
as crises do “eu” e do “outro”.
O
liquidificador antimonotonia de assuntos permite desconfiança, até que a
sensação se desfaz lá pelo primeiro quarto da apresentação e o projeto finca o
pé para dizer a que veio. A autoajuda, o apelo publicitário, a receita de
sucesso, o flagelo social, as variações de anestesiamento, a hipocrisia e toda
uma agenda de indignação, íntima e cidadã, é colada às cenas manejadas pelo
princípio da tríade que rege a montagem.
Três
atores, três cubos em madeira inteiriça servindo ao espaço cenográfico e três
totens de lâmpadas fluorescentes triangulando ao fundo e nas laterais do palco.
A operação da luz fria é feita pelos atores. A simplicidade (ou seria
rusticidade?) dos aparatos escondem o modo como eles são estrategicamente acionados
e subsidiam as vozes que vagam na contramão das etiquetas e dos bons-costumes.
O
caráter manifesto da palavra falada ou escrita convive com instantes de
silêncios e as demandas coreográficas. Apesar da potência da gestualidade em
várias passagens – eficiente no alinhamento dos braços em punho, símbolo caro
que poderia ironizar aquela loja de varejos que replica a Estátua da Liberdade
–, ela chega a ficar a reboque do verbo – como na recorrência com que os corpos
dão a ver o esforço de “empurrar” (e aqui a metáfora é vasta) apoiando-se nos
cubos, elementar.
Mas
a mesma imagem de seres a “empurrar” resume as inaptidões, o cansaço, ao mesmo
tempo em que diz algo sobre a necessidade de resistir tal qual Sísifos sublevados.
Uma juventude avessa à desesperança e que reage aos abscessos da sociedade. Sem
essa de conformar-se com a inutilidade de rolar a pedra até o alto da montanha.
Os
fragmentos de sensações e espasmos da obra deixam um rastro sobre certo
Joãozinho, sujeito que é narrado por Pietra Garcia e aos poucos ganha feições.
Suas pontuações dão um corpo e uma alma às pinceladas expressionistas de Em respeito à dor.
As
três atuações ainda se ressentem de aspectos laboratoriais, uma rigidez
possivelmente influenciada pelos temas que o espetáculo encara. Sente-se falta
de distensão. Pietra Garcia denota trabalho de voz e olhar intenso, ela que dá
corpo e alma a Joãozinho sem representá-lo.
Todos
estão na esteira da não linearidade, com intenções lacunares para que o público
preencha de acordo com seu repertório de vida e de contato com as artes
cênicas. Sentidos livres.
Ainda
é cedo, mas tudo leva a crer que a Karma não veio à luz por acaso no mês
posterior às jornadas de junho de 2013, destinada a celebrar sua inconformidade
pensando e praticando arte.
Iremos ouvir muito sobre a Karma!
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