quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Critica - Pereira da Tia Miséria por Valmir Santos

Dialética da fome

A cultura popular “de raiz”, como se diz, será sempre uma inspiração aos criadores realmente dispostos ao bom combate. Ela não é para os fracos que a veem como atalho facilitador. Não à toa, a tradição brasileira é repleta de autores que a têm pelo viés da comédia pensada e curtida na sofisticação. Basta citar Martins Pena, Artur Azevedo e Ariano Suassuna.
                                              
No teatro de rua, então, o gênero é hegemônico quando se trata de dialogar com essas fontes: drama e tragédia raramente confluem para o espaço público. E quando a química (ou a quimera) acontece, o resultado é sempre memorável. Aos exemplos: Romeu e Julieta (1992), do Grupo Galpão (MG); A brava (2007), da Brava Companhia (SP); O amargo santo da purificação: uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella (2008), da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (RS); e O encontro de Shakespeare com a cultura popular: Romeu e Julieta (2010), do Grupo Garajal (CE).

Acrescente-se à lista pessoal (e informal) A pereira da Tia Miséria (2010), do Núcleo Às de Paus, drama inspirado numa das narrativas de domínio público do livro Contos populares espanhóis (2005), organizado por Yara Maria Camillo.

Quem adaptou a peça foi Luan Valero, que prima pela estruturação em versos e não violenta a rima. Valero cumpre com estilo, crítica e beleza a tarefa de contar uma história em perspectiva épica, sem facilitar a vida do espectador e tampouco desprezar potencialidades nas cores e simbologias da palavra, está que nem sempre irradia poeticamente à altura ao ar livre.

No semicírculo da praça-calçadão, os atores valorizam a oralidade-musicalidade mesmo com a incidência do sol em seus rostos durante a apresentação no fim da manhã. Substituições ocorridas em cinco anos de estrada (notamos pelo menos duas) não comprometeram a qualidade do conjunto que assina justamente a encenação coletiva.

A espacialidade cenográfica é delimitada pelo quintal e arvore-título ao centro, feita de material reciclado gerador de rusticidade alinhada ao mote universal da fome. Ela é personagem oculta, o filho da Tia Miséria, batizado Fome, que ganhou o mundo e ainda não voltou. Enquanto o espera, ao lado do cão Sem Nome, ela cuida das peras. A natureza provê os frutos num vilarejo marcado pela carestia. O passatempo de dois moleques da vizinhança é trepar na árvore para comer quando ainda nem é o tempo de colheita.

Do conflito básico com esses peraltas, à chegada de um andarilho que lhe abrirá uma janela de esperança no presente e no futuro, além do embate com a figura da Morte, os fatos sugerem um contexto medieval refletido na visualidade e um nexo absolutamente atual do problema-tema perpetuado no curso da humanidade.

Em seu primeiro espetáculo, os jovens criadores da trupe forjada na Escola Municipal de Teatro de Londrina conseguem a proeza de capturar o interlocutor, mesmo o desavisado pedestre ou o ciclista que cortam o miolo da cena, distraídos. Independente do assunto e da precariedade material – afinal, estamos falando da pobreza extrema –, a fabulação enreda espectadores de todas as idades.

A moral não vem como discurso ou lição, mas perceptível na materialidade da arte que a Ás de Pau dá a ver. A destreza técnica em equilibrar-se em perna-de-pau ou nas quatro “patas-de-pau” do cachorro confere um clima de suspensão em que tudo está na iminência de acabar ou espatifar-se no chão. Por outra, os atravessamentos perpendiculares dos personagens ou figuras que avançam ou adentram as laterais para além da multidão também são abre-alas da força sertaneja, quixotesca.

O retrato humano sem retoques e seus borrões históricos caracterizam o materialismo dialético comungado, também, em versos e cenas de horror. A pereira da Tia Miséria é uma experiência poética dura, feito as pedras de João Cabral de Melo Neto em Morte e vida Severina. Mais um espirituoso teatro de rua para a galeria da memória, um sopro vindo das terras vermelhas do norte paranaense.  

– de novo. A maquiagem (visagismo), os bonecos, as pernas-de-pau, o canto e as evoluções coreográficas são recursos manipulados com efeitos surpreendentes no texto de perspectiva épica.      


Na toada da tradição teatral brasileira a cultura popular teve e permanecerá contando com a adesão dos artistas de todos os tempos. A comédia é gênero por excelência em clássicos de Martins Pena, Artur Azevedo e Ariano Suassuna. Não teatro de rua, el  



A miséria alegórica e protagonista
02 de agosto 2013 | por Clarissa Falbo • Recife
A rua – e a assistência formada pelos que nela transitam, trabalham ou residem – não poderia ser local mais propício para abrigar um espetáculo sobre a miséria. Em contraste, porém, com a carência real das calçadas e das vias, a miséria, a fome e a morte são representadas como alegorias em A pereira da tia miséria.
Tia Miséria é uma senhora pobre e triste cujas posses se resumem a uma pereira. Acompanhada por seu cão sem nome, a velha tenta proteger o patrimônio dos furtos famélicos constantemente realizados pela vizinhança enquanto espera a volta de seu filho Fome, que se extraviou mundo a fora. Quando a Morte, de unhas negras e foice empunhada, se aproxima, a tia a engana e a aprisiona. Miséria sobrevive, mas o custo de sua astúcia é que ninguém jamais morrerá.
As pernas-de-pau, ponto de partida para a pesquisa estética e estruturador da pulsão criativa do paranaense Núcleo Às de Paus, elevam e distanciam as personagens em realidade tão próximas e familiares ao universo das ruas. As estruturas se tornam prolongamento dos corpos, servem de muletas e dão vida a bonecos manipulados pelos atores.
Também promove o distanciamento a composição em versos da dramaturgia de Luan Valero, baseada em um conto popular espanhol. A musicalidade da palavra rimada foi sensivelmente refinada pelas canções executadas em cena. Destacam o tom poético do texto os belos arranjos de Eric D’Ávila, nos quais instrumentos percussivos somam-se às vozes afinadas da trupe – ainda que, vez por outra, não se alcance o volume ideal para o ar livre. A direção da obra é assinada pelo grupo.
Ator do Núcleo Às de Paus em apresentação no Recife
Nada como subverter o tempo frenético e a atmosfera da rua inundando-a com a dramaticidade e a cadência de uma narrativa mais complexa. Há versos cantados que soam como mantras e cumprem mesmo o papel do comentário brechtiano:
O que é desprezível
Não se deve desprezar.
O que é invisível
É preciso enxergar.
Digo de antemão
Esta é a canção
Do universo em expansão.

O Ás de Paus, oriundo das salas de ensaio da Escola Municipal de Teatro de Londrina e representante da novíssima safra paranaense, parece herdar a medida da mistura entre erudito e popular tão cara ao Grupo Galpão (MG) e aos Clowns de Shakespeare (RN). A pereira da tia miséria (2010), seu primeiro espetáculo, foi agraciado com o Troféu Gralha Azul, importante premiação da cena teatral no Paraná, e participa em 2013 do Festival Palco Giratório, promovido pelo Sesc nacional, sendo levado a cidades de todo o país.

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