Formas
animadas para afetos perversos
Ao longo da última década,
parte significativa dos espetáculos produzidos na cidade de Belo Horizonte a
conquistar projeção nacional apresentava certa qualidade afetiva. Como toda
generalização, esta é, claro, uma simplificação, guardadas infinitas variantes,
no intuito de reconhecer uma atmosfera em comum, já em transformação nas
criações desses mesmos grupos em anos mais recentes. Singular na cena mineira
desde a adoção de uma linguagem de teatro de bonecos para adultos, o grupo Pigmaleão
Escultura que Mexe se distingue desse conjunto pela produção de afetos
perversos. Assim, joga luz sobre outro aspecto cultural que a cordialidade
costumeira recobre: a hipocrisia da tradicional família mineira. Sem dúvida é
possível substituir o dado geográfico da expressão sem alterar os outros termos,
mas resiste entre as montanhas de minério condições especiais para uma
dramaturgia rodrigueana que mereceriam estudo sócio-antropológico. Pernambucano
como era o autor das tragédias cariocas, Nelson Rodrigues se sentiria em
família.
Espancar docemente – embora seja
o lema de outro grupo – descreve perfeitamente a atmosfera criada pelo Pigmalião
em “O Quadro de Todos Juntos”. Mas o espancamento aqui é mais brutal e deixa
sequelas. A evidência mais à superfície de tal contradição é o uso de máscaras
e bonecos de porcos, fabricados com riqueza de detalhes. Nem cães e gatos, nem
corvos: os porcos são bichos dúbios, entre a graça de um filhote e a imagem
grotesca num lamaçal. Na forma de bonecos afáveis, a ternura é reforçada pelo
modo como gesticulam, como o porquinho enxuga uma lágrima e cutuca a mãe ou
como a porquinha carrega a tiracolo um ursinho. Inocência violada pela violência
das relações familiares, vistas através de uma lupa que amplia o ciúme, o
desejo, a crueldade e a indiferença entre pais e filhos, irmãos e irmãs.
O flash da câmera aciona a
hipocrisia ao gerar a pose em trajes de domingo para o retrato da família perfeita.
A dramaturgia se constitui desses quadros fixos fotográficos entremeados por
cenas expressionistas do cotidiano familiar, sugestivas de violências físicas e
psicológicas terríveis. Na sequência de maus-tratos praticados por adultos e
crianças forja-se o ciclo do nascer do trauma e do despertar da crueldade em
cada nova geração. O abandono afetivo e o abuso cometido por quem é mais íntimo
molda a personalidade dos pequenos, como se vê no olhar do porquinho deixado de
lado ou na ação na porquinha que reproduz no urso de pelúcia o ultraje sofrido.
Pelo poder de captura do tempo, próprio da fotografia, o repetir dos flashes
deixa uma sensação memorialista de presente tornado passado. Ou, ao menos, de um
apontar para a posterioridade (esta à qual sempre se destinam as fotos), para o
ciclo que não acaba e, mesmo que cesse, deixa marcas.
Tais dinâmicas relacionais
entre gerações ecoam temas psicanalíticos, remetem a complexos freudianos, sem,
contudo, constituir um discurso cênico psicologizante, pois operam no nível da
sugestão e da irracionalidade. Tal como na “Filosofia da Alcova”, de Marquês de
Sade, obra propulsora (e homônima) do espetáculo anterior do grupo; em “O
Quadro de Todos Juntos” o foco recai sobre a sexualidade desviante das normas
sociais e, neste caso, escassa em consentimento. O teatro de animação permite
um tratamento mais livre e imaginativo dessas temáticas adultas tabus, pois o
boneco surge como uma figura transumana, capaz de transitar pelas zonas mais
sombrias das relações humanas com poesia, sustentado simultaneamente peso e
leveza.
A linguagem desenvolvida
pelo Pigmalião é de elaboração sofisticada, com recurso simultâneo à atuação de
atores com máscaras e a bonecos manipulados, sob uma iluminação direcionada que
inunda o entorno em breu. Tudo isso em justa sincronia com uma trilha sonora
constante, misto de instrumental, canto lírico, ruídos e grunhidos, que
funcionam tanto para gerar tensão (como em filmes mudos ou de terror) quanto
como uma espécie de gromelô, a instigar a imaginação do espectador para
atribuir significado ao que vê e ouve. A encenação, assim, faz-se partitura
musical a ser seguida à risca por atores-manipuladores que, como bailarinos
clássicos, não podem perder os tempos.
Esse ritmo interno rigoroso
é cumprido pelos atuantes, que dão vida à matéria morta e desaparecem no quadro
escuro como bem se espera de um manipulador. Há, porém, outra camada rítmica
que ainda pode ser lapidada – aquela resultante da relação entre o microcosmo
de cada cena e a macroestrutura da sucessão de quadros, cuja toada constante
atinge um ponto de previsibilidade e poderia se favorecer do modular de
gradações. Um ponto-chave que mereceria ser mais enfatizado, por exemplo, é o
revelar do boneco sob a máscara, potencial gerador de curto-circuito cognitivo
com fortes desdobramentos simbólicos.
Para o espectador que
busca distração agradável no teatro, “O Quadro de Todos Juntos” pode ser uma
experiência indigesta. O gesto do grupo em relação o público é o gerar de
desconforto, a ilusão de um pesadelo, mas sempre na tensão com o prazer
estético proporcionado pela linguagem incontornavelmente lúdica dos bonecos.
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