segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Critica - Trueque por Valmir Santos

A dimensão poética sob o manto da singeleza


Sob a pele e o espírito da palhaça Mary En, a atriz Enne Marx abre o espetáculo despontando pela porta lateral do teatro, junto à plateia. Sobe ao palco, recebe o foco de luz e aciona um aparelho sonoro para brincar com um jeito diferente de anunciar os três sinais. O público formado por crianças e adultos (estes na maioria) não esboça reação. Habituadas a atuar em hospitais do Recife e outras cidades pela ONG Doutores da Alegria, Enne Marx/Mary En e a colega Tamara Floriano, a palhaça Tan Tan, sabem cativar o paciente esquivo, muitas vezes acometido por doenças graves, e não demoram a dobrar o espectador de Itajaí nos primeiros instantes da sessão de Trueque, com a Cia. Animée, vinda do Recife.

Entre acepções possíveis, “cativar” pode designar encantamento ou sujeição. Esta passa ao largo. O trabalho da dupla é regido pela libertação do imaginário. O desafio é tecer uma relação de cumplicidade, como na delicada abordagem de uma menina da primeira fila que teve sua timidez respeitada e se permitiu interagir, a ponto de “ressuscitar” elefante.

A ponderação das diferenças está no princípio da troca. A expressão-título em espanhol possui larga apropriação no teatro de grupo, como nos processos artísticos do cinquentenário conjunto dinamarquês Odin Teatret e no brasileiro e balzaquiano Lume Teatro, de Campinas – este em ações artísticas e aquele em ações comunitárias e artísticas.

O manto da singeleza na criação da Animée não oculta a dimensão poética na construção de sentidos. Recursos da tradição circense como o timming da assim chamada palhaçaria – o nariz vermelho sutil e os números gregários de mágica, por exemplo – são evocados em sintonia com a força-motriz da musicalidade.  

Tan Tan concentra as habilidades musicais no canto, no sopro e nas cordas, recorrendo ao trompete ou ao “mano” ukulele, entre outros instrumentos. Mary En encarrega-se mais do contato direto com o espectador, buscando a sintonia fina sem condescendência – porque o instinto da arte do palhaço está em instaurar ruídos, sempre. Ela também canta e toca a bem bolada engenhoca instrumental que a certa altura adentra a cena, construída a partir de canos de PVC e outros materiais – a lembrar os xilofones do grupo mineiro Uakti.

Sucede em Truque uma dramaturgia aberta à proatividade do público. Não há estritamente uma história, mas o encadeamento de quadros. A trupe reivindica e alcança uma simbiose que se dá mais no nível da predisposição à centelha lúdica contida em qualquer sujeito em formação, não importa o estágio da vida.

Uma das passagens mais inspiradas aborda o tabu da morte – tema naturalizado no ambiente hospitalar e apagado do convívio em casa, na escola ou no trabalho, a não ser que a “Caetana” dê o ar da graça. O fim e a despedida do bocal do trompete, ou o “biquinho”, ilustra a química entre as atrizes Enne Marx e Tamara Floriano. Elas elaboram a morte com o “fio da vida” que cai do teto e a ele é enganchada a tal pecinha para ascender aos céus. Posam de cerimoniosas, cantarolam e logo estamos todos rindo da situação hilariante e, como pano de fundo, indicativa da finitude reservada a todos.

A apresentação evidenciou a condição ideal de ter o público mais próximo das atrizes. A distância frontal e a altura do palco pressupõem esforço multiplicado das palhaças para transpor o vão e atingir a terceira margem junto com o público.

Ambas coassinam a direção de arte com o diretor do espetáculo, Fernando Escrich. Os coloridos nada berrantes dos figurinos, dos cachos suspensos de luzezinhas, dos objetos e adereços conferem autenticidade ao carrossel infantil das palhaças que aludem à mala do ambulante plantado em praça pública para chamar a freguesia, à empanada do mamulengueiro mambembe e à lona circular que forra o tablado com uma estrela azul no meio. Saudações artísticas à cultura popular sem o saudosismo paralisante, dançando com os mestres para dar uns passinhos adiante com muito tutano e inquietude.


A Animée tem oito anos de estrada, é integrada ainda por Nara Menezes, a palhaça Aurhelia, e compõe com uma quarta atriz, Juliana de Almeida, a Baju, a banda As Levianas, portanto constituída só de palhaças. Outro braço das ações culturais é a realização do PalhaçAria – Festival Internacional de Palhaças do Recife, que vai para a terceira edição.

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