Desfocalização e método
Um
dos paradigmas do texto dramático é a capacidade de expor pontos de vistas. Ao
constatar ambiguidades e pluralidades, o observador pode fruir sua leitura,
afetar-se. Quando os fios não estão dados, a aventura do espectador resulta, em
si, a fricção intertextual que o criador contemporâneo deseja obter,
suspendendo os significados e plasmando os significantes. São estes que dão as
cartas no espetáculo da Cia. Bruta de Arte, fortemente apoiado nas pulsações
físicas, sonoras e visuais (o desenho de luz, sobretudo).
Máquina de dar certo é
um título irônico para uma dramaturgia expandida, de epicentro corporal,
erguida sob o elogio ao erro. Uma dezena de atuadores confere um prazer incomum
de estar em cena, em estado performativo, deflagrando o esgotamento e o
fracasso indutores do sistema opressivo a que são psicofisicamente condicionados.
Num
roteiro que parece concebido em colaboração (a ficha técnica não informa a
dramaturgia não verbal), toma-se os experimentos comportamentais do psicólogo
norteamericano Frederic Skinner (1904-1990) para arquitetar um espetáculo
pautado por uma voz de comando dissimulada em didatismo. Todos os estímulos de
uma ciência que se acredita evolutiva pelo pretendido controle mental ou
orgânico são aplicados num ambiente fechado, hostil e sempre em grupo.
A
anulação do indivíduo e mesmo o coro como massa de manobra dão lugar às
subversões. O dispositivo maquinal – a voz autoritária, de apelo fordista, ferrenha
no monitoramente dos testes – é contraposto aos próprios corpos a que tenta
anular autonomia. A exaustão reaviva as fisionomias das mulheres e dos homens.
A dança e a trilha sonora embalam essas figuras teoricamente combalidas. Elas
vibram. Há um prazer reconhecível em contrariar as regras do jogo imposto e
várias vezes interrompido; em assumir o “game” e não sucumbir à neurastenia.
Naturalmente, as cobaias são incitadas à disputa com o outro, o “concorrente”,
mas esses conflitos não chegam a se desenvolver. A instabilidade é o que os
une, apesar do eterno retorno à condição que se pensava superada: mudança de posto
para o “vencedor” de turno, apartado.
O
espetáculo dirigido por Roberto Audio contorna os próprios limites
instauradores de uma dramaturgia de confinamento. Filas militares, alinhamentos
perpendiculares e rompimento literal da quarta parede com os atuadores tomando
os corredores do teatro empoderam a movimentação coreográfica nesse
teatro-dança de invocar Pina Bausch. Não chega a ser um levante coletivo, mas a
ação física e a fisionomia dos integrantes da companhia – tipos tão diversos e
algo surreais – infiltram um mundo paralelo de cadências e jogos cerebrais
transmissores de pesquisa artística sólida.
A
criação leva às últimas consequências a noção do fazer cênico enquanto artifício,
correlacionando metodicamente sutilezas, engenhosidades e estranhamentos
gestuais como resistências à operação desmonte a que as pessoas estão
submetidas. A mentira e os simulacros ficam realçados pela marionetização
oculta. Afinal, a manipulação do espetacular é hiperbólica. Os mínimos sinais
de relatos são abafados – não há vez para voz própria, claro. A maneira de
reativar forças é respirar e encontrar janelas dançantes nesse ambiente de
exceção, disciplinar, em meios a tantos espasmos e perplexidades. A arte é a
válvula de escape. O imaginário contrapõe a ilusão como no caminho amarelo de O mágico de oz.
Em
sua primeira década, a Cia. Bruta, de São Paulo, consolidou personalidade com
processos conceituais que desfraldam as dobras mais ínfimas de bio, micro e macropolíticas.