A desorientação humana pela remodelagem do espaço e do
tempo
A trilogia com que se inicia o percurso criativo do grupo
gaúcho In.co.mo.de-te (Inconformada
Companhia de Moda, Design e Teatro) sustenta-se em textos do escritor estadunidense Paul Auster escritos à luz da obra de Samuel Beckett. "DentroFora", segundo dos três e o que mais circulou pelo país até agora, inspira-se em "Hide and Seek", de Auster -- por sua vez, uma recriação direta dos "Dias Felizes" de Beckett. No espetáculo, homem e mulher estão ambos encaixotados e incapacitados de se verem, num contexto em que o consumismo acelerado no capitalismo tardio ocupa as lacunas do vazio existencial no pós-guerra beckettiano. O rigor formal da cena enclausura os elementos na beleza estática do quadro imóvel; não é somente Winnie quem está soterrada: luz, espaço e corpos aprisionam palavras ou são aprisionados por estas.
Companhia de Moda, Design e Teatro) sustenta-se em textos do escritor estadunidense Paul Auster escritos à luz da obra de Samuel Beckett. "DentroFora", segundo dos três e o que mais circulou pelo país até agora, inspira-se em "Hide and Seek", de Auster -- por sua vez, uma recriação direta dos "Dias Felizes" de Beckett. No espetáculo, homem e mulher estão ambos encaixotados e incapacitados de se verem, num contexto em que o consumismo acelerado no capitalismo tardio ocupa as lacunas do vazio existencial no pós-guerra beckettiano. O rigor formal da cena enclausura os elementos na beleza estática do quadro imóvel; não é somente Winnie quem está soterrada: luz, espaço e corpos aprisionam palavras ou são aprisionados por estas.
A estilização acentuada do quadro cênico, proposta
coerente com as artesanias que antecedem o teatro no nome da companhia gaúcha,
aponta para um projeto de obra de arte total, no qual o cenário, a música, a
luz e o figurino impactem sobre os significados e afetações tanto quanto o
texto. Eis o traçado comum a "A Vida Dele", espetáculo que encerra a
trilogia austeriana e trata os corpos dos atores Liane Venturella e Nelson
Diniz como esculturas no espaço, definidas pelo jogo de luz e sombras da
atmosfera misteriosa inspirada na peça "Blackouts" e no romance
"Fastasmas", novamente de Auster.
Sob a responsabilidade da cenógrafa e iluminadora Cláudia
De Bem, a luz atua no desenho do espaço, faz-se cenário, dita tempos,
transforma situações, compõe quadros altamente gráficos, inspirados em clichês
de histórias de espionagem, e embaralha as linhas curvas e soltas da dramaturgia.
Enfim, aparece em primeiro plano como a força superior e oculta que, num mundo
sem deuses, conduz as ações.
Pois é um mundo destituído de todo destino sagrado tanto
quanto de qualquer possibilidade de sentido estável o que habitam os
personagens Peter e Verdi. A fábula inventada pela dramaturga Michelle Ferreira
a partir dos textos de Auster ilumina a previsibilidade e a falta de finalidade
da vida humana, temas obviamente beckettianos. Como uma dupla de clowns (também
o eram eram Didi e Estragon), de narizes proeminentes, Peter e Verdi, o astuto
e o ingênuo, gastam as horas a espionar um desconhecido na nulidade de seu
cotidiano. Ilustram a desorientação humana diante do tédio da existência e do
despropósito do tempo, dentre outras leituras que uma obra aberta propicia a
cada espectador.
Em meio a reviravoltas típicas de romances detetivescos,
emerge a possibilidade de se pensar sobre a própria atividade da escrita,
ocupação principal do desconhecido espionado (o ator Carlos Ramiro
Fensterseifer), em variadas camadas. Da vida que se faz mais estimulante na
imaginação do que na prática. Dos detetives que espionam o escritor ou do
escritor que inventa personagens detetives que o espionam a escrever. E, ainda,
do escritor que observa os personagens de outro autor para a partir deles
compor sua obra, tal como Auster em relação a Beckett.
Diante dessa crítica ao cotidiano esvaziado, a
estetização da cena e o investimento na teatralidade dos elementos contrastam
criando uma forma marcadamente extracotidiana, cujo afastamento do real
simboliza a recusa à banalidade do estar vivo. A musicalidade exerce função
determinante para esse descolamento da margem de atuação do homem comum,
ampliada pelo fazer artístico. Não somente a música em si, a remodelar o tempo
assim como o faz a luz; mas a própria musicalidade nos tempos das falas dos
atores, que coreografam as palavras, tanto quanto os corpos são coreografados
no espaço. A habilidade em esculpir tempo e espaço por meio da ação da luz
e do som sobre os corpos e o palco é um forte traço de personalidade do grupo
desenhado já em trabalhos anteriores, e une as disciplinas específicas do
artistas envolvidos em prol da teatralidade.
A considerar a apresentação vista no IV Festival
Brasileiro de Teatro Toni Cunha, em Itajaí, a partir da metade do espetáculo, à
medida em que aumentam as contracenas entre os personagens, a encenação mostra
alguma dificuldade em manter o rigor formal da engrenagem cênica criada, assim
como os contornos do desenvolvimento narrativo de um pseudomistério que tende a
se diluir na nulidade da vida. Para que o impacto não se disperse, merece
atenção também a cena final, quando a repetição de um elemento nonsense pode
restringir-se ao efeito pelo efeito, mais do que gerar desnorteamento.
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