quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Critica - Esse Corpo Meu? por Luciana Romagnolli

Uma poética da libertação dos corpos

É próprio da performance como campo de conhecimento superar o

logocentrismo, que concentra o saber humano somente na razão e nos
discursos, e o pensamento binário, que constitui pares dicotômicos
hierárquicos e excludentes, como sujeito/objeto, mente/corpo, razão/emoção,
homem/mulher, masculino/feminino. Com isso, não somente valoriza os
saberes do corpo, mas coloca em xeque questões de gênero e identidade.

A performatividade é um conceito sobre o qual muitos já escreveram. Dentre
elas, Judith Butler, no viés do feminismo e da teoria queer, pensando o
processo de constituição do gênero por meio da internalização das normas do
que é ser homem ou ser mulher, manifestas nos corpos.  E Josette Féral e
Erika Fischer-Lichte, ao apresentarem teatro performativo como aquele no qual
a presença sobrepõe a representação.

“Esse Corpo Meu”, criação da Téspis Cia de Teatro, de Itajaí, com a Periplo
Compañia Teatral, de Buenos Aires, trafega por esses dois territórios, da
performatividade de gênero e teatral, com admirável habilidade em colapsar a
oposição entre forma e conteúdo. Max Reinert e Denise da Luz corporificam os
estereótipos do masculino e do feminino e os lançam num jogo de intercâmbios
e mutações, que desestabilizam o binarismo dessa oposição, mostrando
possibilidades transgressoras e transitórias.

Trans. Eis o prefixo-chave, já transformado em conceito. Remete ao universo
da diversidade sexual, nas figuras de travestis e transexuais, não como novas
categorias estanques, mas, justamente, como a liberdade de transcender
categorizações, transitar “entre”, “além” dos polos dos binômios. Nesse sentido,
além de um movimento no campo dos direitos humanos fundamental em
nossos tempos, o “trans” transpõe qualquer gueto para afirmar a liberdade do
ser, a possibilidade de desvencilhar-se dos restritos padrões normativos da
constituição da identidade. Assim, liberta cada indivíduo de experimentar sexo
e gênero como aprisionamento.  

Em Belo Horizonte, “Esse Corpo Meu” encontra um espelho: o espetáculo
“Trans”, do coletivo This is noT, realizada pelos performers Guilherme Morais e
Ana Luísa Santos. As coincidências são várias, desde o diálogo com a
argentina, a partir das pesquisas sobre identidade de gênero da ONG Futuro
Transgenérico e da artista trans Susy Shock, até questões formais mais
específicas, como as imagens do duplo, configurada pelos atuantes, e a
simultânea frente de batalha nos campos da linguagem, da imagem e do corpo.

Ao traçar outras conexões entre o espetáculo da Téspis se a cena teatral
brasileira mais contemporânea, percebe-se a força estética e ética de um
conjunto de trabalhos. Ainda na capital mineira, uma das criações mais
desafiadoras do ano passado foi a cena “Não conte comigo para proliferar
mentiras”, dirigida por Alexandre de Sena, somando perspectivas críticas de
cor, classe e gênero; e “Rosa Choque”, sob a direção de Cida Falabella, e
“Calor na Bacurinha”, quando dirigida por Marina Viana, embora não abracem
frontalmente a questão trans, desconstroem estereótipos da performance de
gênero e do ser mulher. Já em Curitiba, há os trabalhos da Selvática Ações
Artísticas, dentre os quais “As Tetas de Tirésias”, mito transgênero primordial,
lembrado também no espetáculo de Itajaí.

O que faz desses trabalhos tão desafiantes para o espectador – falando
especificamente de “Esse Corpo Meu” também –, é a construção dramatúrgica,
energética e espetacular não de uma alegação, certeza ou defesa de ponto,
cristalizadores das ideias e das ações, mas de um questionamento. Uma crise.
Uma indagação.

Para isso, é determinante a não coincidência entre a cena visual e a cena
sonora – entre os movimentos dos corpos presentes e as vozes
desencarnadas em off. O tratamento poético dado às palavras mas também
sua forma de emissão, em eco, entre ruídos sonoros que remetem ao futurismo
oitentista de ciborgues transumanos. O caráter simbólico dos movimentos dos
atuantes, construídos numa operação de estilização que transforma os gestos
mais cotidianos, clichês de gênero, em estranhamentos.

A expressividade corporal de Max e Denise delineia-se plástica e
discursivamente como produtora de imagens impregnadas de simbolismo.
Vestir uma roupa corresponde a vestir um papel social, ou igualmente desvesti-
los, e o preparo corporal de ambos permite o livre trânsito pela gramática do
feminino e do masculino. Quando finalmente as gestualidades se confundem,
inclassificáveis, os braços enfim se soltam, livres dos gestos pré-programados
da moça e do macho, e dançam explorando o espaço.

A cena da construção da mulher perfeita é exemplar: impressiona o quanto se
reconhece do ideal feminino socialmente aceitável no frankstein-mudo. Este e
outros momentos ainda fazem pensar sobre a complexa relação entre a
construção do feminino pelo corpo-mulher e pelo corpo-homem. A diva loira
como algo do qual a mulher precisa se libertar, mas que o corpo-homem, se
não cisgênero nem heteronormativo, almeja como libertação.

Corpos e sons geram uma atmosfera sinestésica, uma sensibilidade particular,
de uma delicadeza estranha, leve acidez afetiva a corroer pouco a pouco as
certezas do espectador. O que se faz no palco, segundo o próprio texto, é a
paródia da paródia da paródia. O humano que imita o humano que imita o
humano que imita. As figuras em cena insistem em risos satíricos – riem de si
ou de nós? Recobrem com uma camada de cinismo tudo o que mostram.

Na apresentação realizada no IV Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, a
presença de uma turma de estudantes na plateia extravasou o difícil convívio
desse tipo de proposição cênica com um público indisposto ao confronto
estético, manifesto no fiufiu sexista, na surdez e na cegueira eletivas para o
que não se quer enfrentar – atitudes comuns a outros estratos da sociedade
menos dispostos a se autodenunciarem em gritos adolescentes.

Diante de cenas sugestivas como a bolinha que repetidamente rola do homem

em direção ao meio das pernas da mulher e o brincar de carrinho e de boneca,
entrevê-se a puerilidade da heteronormatividade castradora. Mas “Esse Corpo
Meu” não trata o espectador como criança. O cinismo é um modo de olhar para
esse indivíduo infantilizado socialmente pela simplificação normativa,
padronizada e binária do mundo como o adulto que ele é.

O espectador olha para a cena ou a cena olha para o espectador?

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