Uma
lupa sobre a teatralidade
Vigiar
tornou-se um verbo caro aos maniqueísmos operados sobre o imaginário de
qualquer cidadão na sociedade do consumo, ora hegemônica. A vida dele dá margem para pensar essa escala ou mesmo aquela dos sistemas
autoritários a seco, como retratado no filme A vida dos outros (2006), do alemão Florian Henckel von
Donnersmarck, que expõe o ponto de vista dos funcionários do serviço secreto da
porção comunista de Berlim, a cinco anos da queda do Muro, em 1989, com marcação
cerrada sobre um dramaturgo cujas peças afrontariam o regime.
São
exemplos de leituras subliminares no espetáculo da In.Co.Mo.De-Te, contração
para a Inconformada Companhia de Moda, Design e Teatro. A criação dá o que
pensar em seu mix de campos da linguagem. Elementos do cinema, da literatura, da
dança, da música e das artes visuais ampliam ou comentam com forte invenção
cênica a narrativa inspirada na prosa e no teatro de Paul Auster (Fantasmas e Blecautes, respectivamente).
O
coração do projeto gaúcho é o gênero policial, especialmente as convenções noir assentadas nas tradições literárias
e cinematográficas. Dois homens espionam a vida de um terceiro. A situação dos
detetives contratados para escanear as miudezas desse então misterioso sujeito
é infiltrada pelas derivações estilísticas do autor norte-americano, da
paulista Michelle Ferreira, instada a dialogar livremente com as ficções de
Auster, e do núcleo artístico embebido na obra do escritor em outras duas
montagens e há oito anos orientada à hibridação.
Estilizar
é meio caminho andado para o inferno quando se aplica a estruturas clichês de
nascença, caso das tramas policialescas. A maioria dos espectadores traz consigo,
minimamente, os códigos desses enredos. No entanto, em nenhuma das suas
escolhas os criadores de A vida dele
conformam-se ao mais do mesmo. Bebem das fontes com as devidas subversões e o
compromisso inalienável de sustentar uma teatralidade genuína.
É
um deleite testemunhar como a metódica construção espetacular incorpora suas
próprias janelas para os devaneios, as quebras da história em que os dados preliminares
são colocados do avesso quando assimilados. Os fluxos de consciência permitem
questionar a noção de autoria. Afinal, tudo pode ter saído da cabeça do
escritor investigado com os personagens assumindo livre-arbítrio. Trânsito que
passa, inclusive, pela questão de gênero: a atriz Liane Venturella é um dos
detetives.
Embaralha-se
o quem é quem no trio e ainda numa quarta figura com o cabeção do Mickey – coringa
no tabuleiro deslizante de entradas e saídas apoiadas pela contrarregragem (o
cheque e as anotações de quem encomendou as diligências surgem como objetos de
formas animadas).
A
encenação de Ramiro Silveira surfa nessa tamanha instabilidade com toda a segurança
que a companhia proporciona em termos de maturidade no habitat das artes
cênicas. Quando preciso, o diretor dosa as ações e os movimentos para o público
exercitar suposições diante das lacunas que o texto propõe. Michelle Ferreira
sente-se à vontade pisando os universos paralelos do fantástico e do suspense
com os quais joga com inteligência e humor experimentais, feito a produção
emergente de suas peças. E a intervenção da luz de Claudia de Bem é vital para
as metamorfoses da história, ousando o descolamento do preto e branco,
tonalidade presumida no noir, com irrupções
multicoloridas e simetrias espaciais e atmosféricas bem amparadas pela trilha sonora
composta por Alvaro Rosa Costa.
Emoldurada
por visualidade incisiva, A vida dele
não pararia de pé sem o domínio das atuações. Celso Diniz e Liane Venturella são
meticulosos no gesto e na voz dos detetives dotados de aura existencial: o monóculo
da busca volta-se cada vez mais para eles mesmos. Na primeira metade da
apresentação, os vestígios são de um Vladimir e de um Estragon esperançosos de
algum aceno de Godot. Na precipitação dos duplos e inversões, somam-se traços
chaplinianos e hitlerianos sugeridos pelos figurinos (em tons preto e verde),
de Carlos Ramiro Fensterseifer, também o terceiro ator (ele veste azul), o alvo
que passa para o lado de lá dos seus investigadores com um número de sapateados
– mais uma vinheta na montagem jazzística em sua combinação perfeita de
autonomias.
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