domingo, 9 de agosto de 2015

Critica - A Vida Dele por Valmir Santos

Uma lupa sobre a teatralidade


Vigiar tornou-se um verbo caro aos maniqueísmos operados sobre o imaginário de qualquer cidadão na sociedade do consumo, ora hegemônica. A vida dele dá margem para pensar essa escala ou mesmo aquela dos sistemas autoritários a seco, como retratado no filme A vida dos outros (2006), do alemão Florian Henckel von Donnersmarck, que expõe o ponto de vista dos funcionários do serviço secreto da porção comunista de Berlim, a cinco anos da queda do Muro, em 1989, com marcação cerrada sobre um dramaturgo cujas peças afrontariam o regime.

São exemplos de leituras subliminares no espetáculo da In.Co.Mo.De-Te, contração para a Inconformada Companhia de Moda, Design e Teatro. A criação dá o que pensar em seu mix de campos da linguagem. Elementos do cinema, da literatura, da dança, da música e das artes visuais ampliam ou comentam com forte invenção cênica a narrativa inspirada na prosa e no teatro de Paul Auster (Fantasmas e Blecautes, respectivamente).

O coração do projeto gaúcho é o gênero policial, especialmente as convenções noir assentadas nas tradições literárias e cinematográficas. Dois homens espionam a vida de um terceiro. A situação dos detetives contratados para escanear as miudezas desse então misterioso sujeito é infiltrada pelas derivações estilísticas do autor norte-americano, da paulista Michelle Ferreira, instada a dialogar livremente com as ficções de Auster, e do núcleo artístico embebido na obra do escritor em outras duas montagens e há oito anos orientada à hibridação.

Estilizar é meio caminho andado para o inferno quando se aplica a estruturas clichês de nascença, caso das tramas policialescas. A maioria dos espectadores traz consigo, minimamente, os códigos desses enredos. No entanto, em nenhuma das suas escolhas os criadores de A vida dele conformam-se ao mais do mesmo. Bebem das fontes com as devidas subversões e o compromisso inalienável de sustentar uma teatralidade genuína.

É um deleite testemunhar como a metódica construção espetacular incorpora suas próprias janelas para os devaneios, as quebras da história em que os dados preliminares são colocados do avesso quando assimilados. Os fluxos de consciência permitem questionar a noção de autoria. Afinal, tudo pode ter saído da cabeça do escritor investigado com os personagens assumindo livre-arbítrio. Trânsito que passa, inclusive, pela questão de gênero: a atriz Liane Venturella é um dos detetives. 

Embaralha-se o quem é quem no trio e ainda numa quarta figura com o cabeção do Mickey – coringa no tabuleiro deslizante de entradas e saídas apoiadas pela contrarregragem (o cheque e as anotações de quem encomendou as diligências surgem como objetos de formas animadas).

A encenação de Ramiro Silveira surfa nessa tamanha instabilidade com toda a segurança que a companhia proporciona em termos de maturidade no habitat das artes cênicas. Quando preciso, o diretor dosa as ações e os movimentos para o público exercitar suposições diante das lacunas que o texto propõe. Michelle Ferreira sente-se à vontade pisando os universos paralelos do fantástico e do suspense com os quais joga com inteligência e humor experimentais, feito a produção emergente de suas peças. E a intervenção da luz de Claudia de Bem é vital para as metamorfoses da história, ousando o descolamento do preto e branco, tonalidade presumida no noir, com irrupções multicoloridas e simetrias espaciais e atmosféricas bem amparadas pela trilha sonora composta por Alvaro Rosa Costa.


Emoldurada por visualidade incisiva, A vida dele não pararia de pé sem o domínio das atuações. Celso Diniz e Liane Venturella são meticulosos no gesto e na voz dos detetives dotados de aura existencial: o monóculo da busca volta-se cada vez mais para eles mesmos. Na primeira metade da apresentação, os vestígios são de um Vladimir e de um Estragon esperançosos de algum aceno de Godot. Na precipitação dos duplos e inversões, somam-se traços chaplinianos e hitlerianos sugeridos pelos figurinos (em tons preto e verde), de Carlos Ramiro Fensterseifer, também o terceiro ator (ele veste azul), o alvo que passa para o lado de lá dos seus investigadores com um número de sapateados – mais uma vinheta na montagem jazzística em sua combinação perfeita de autonomias.

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