Formas
animadas para afetos perversos

Espancar docemente – embora seja
o lema de outro grupo – descreve perfeitamente a atmosfera criada pelo Pigmalião
em “O Quadro de Todos Juntos”. Mas o espancamento aqui é mais brutal e deixa
sequelas. A evidência mais à superfície de tal contradição é o uso de máscaras
e bonecos de porcos, fabricados com riqueza de detalhes. Nem cães e gatos, nem
corvos: os porcos são bichos dúbios, entre a graça de um filhote e a imagem
grotesca num lamaçal. Na forma de bonecos afáveis, a ternura é reforçada pelo
modo como gesticulam, como o porquinho enxuga uma lágrima e cutuca a mãe ou
como a porquinha carrega a tiracolo um ursinho. Inocência violada pela violência
das relações familiares, vistas através de uma lupa que amplia o ciúme, o
desejo, a crueldade e a indiferença entre pais e filhos, irmãos e irmãs.
O flash da câmera aciona a
hipocrisia ao gerar a pose em trajes de domingo para o retrato da família perfeita.
A dramaturgia se constitui desses quadros fixos fotográficos entremeados por
cenas expressionistas do cotidiano familiar, sugestivas de violências físicas e
psicológicas terríveis. Na sequência de maus-tratos praticados por adultos e
crianças forja-se o ciclo do nascer do trauma e do despertar da crueldade em
cada nova geração. O abandono afetivo e o abuso cometido por quem é mais íntimo
molda a personalidade dos pequenos, como se vê no olhar do porquinho deixado de
lado ou na ação na porquinha que reproduz no urso de pelúcia o ultraje sofrido.
Pelo poder de captura do tempo, próprio da fotografia, o repetir dos flashes
deixa uma sensação memorialista de presente tornado passado. Ou, ao menos, de um
apontar para a posterioridade (esta à qual sempre se destinam as fotos), para o
ciclo que não acaba e, mesmo que cesse, deixa marcas.
Tais dinâmicas relacionais
entre gerações ecoam temas psicanalíticos, remetem a complexos freudianos, sem,
contudo, constituir um discurso cênico psicologizante, pois operam no nível da
sugestão e da irracionalidade. Tal como na “Filosofia da Alcova”, de Marquês de
Sade, obra propulsora (e homônima) do espetáculo anterior do grupo; em “O
Quadro de Todos Juntos” o foco recai sobre a sexualidade desviante das normas
sociais e, neste caso, escassa em consentimento. O teatro de animação permite
um tratamento mais livre e imaginativo dessas temáticas adultas tabus, pois o
boneco surge como uma figura transumana, capaz de transitar pelas zonas mais
sombrias das relações humanas com poesia, sustentado simultaneamente peso e
leveza.
A linguagem desenvolvida
pelo Pigmalião é de elaboração sofisticada, com recurso simultâneo à atuação de
atores com máscaras e a bonecos manipulados, sob uma iluminação direcionada que
inunda o entorno em breu. Tudo isso em justa sincronia com uma trilha sonora
constante, misto de instrumental, canto lírico, ruídos e grunhidos, que
funcionam tanto para gerar tensão (como em filmes mudos ou de terror) quanto
como uma espécie de gromelô, a instigar a imaginação do espectador para
atribuir significado ao que vê e ouve. A encenação, assim, faz-se partitura
musical a ser seguida à risca por atores-manipuladores que, como bailarinos
clássicos, não podem perder os tempos.

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