Plasticidade captura o olhar para a miséria humana
Diferentemente de estados do Sudeste e
Nordeste especialmente, o Paraná não tem tradição forte em espetáculos de rua
nutridos pela cultura popular. Em Curitiba, onde se concentra a maior parte da
produção – e dos recursos –, o próprio fator climático responde em parte por
essa condição, bem como a opção por outros caminhos estéticos mais enraizados
na dramaturgia literária ou em experimentações contemporâneas. É surpreendente,
pois, o percurso do Núcleo Ás de Paus, de Londrina, no norte paranaense, com “A
Pereira da Tia Miséria”, vencedor do prêmio Gralha Azul – o principal do
estado, mas nunca antes concedido a uma criação que não fosse produzida na
capital.
“A Pereira...” é um espetáculo de rua
que se aproxima do imaginário de Ariano Suassuna e de ideias do paraibano para
o movimento armorial, tais como a encenação ao ar livre, pela oralidade, de uma
narrativa em versos e cantos sobre personagens míticos trajando figurinos
imponentes feitos de farrapos. Outra associação possível é com o cruzamento de
erudito e popular presente nos trabalhos do Grupo Galpão, com quem partilha
ainda características como o uso da perna de pau.
O recurso insere-se como um prolongamento
dos corpos dos atores a conferir-lhes estatura irreal e um desafio constante a
cada movimento, fundamentais para constituir o aspecto onírico da fábula. Além
das pernas-de-pau, os atores portam uma espécie de bonecos-bengalas de uma
perna só, ampliando ainda mais as possibilidades do corpo humano desenhar no
espaço formas fantasiosas que apelem à imaginação.
Sob a simplicidade demandada pelo
espaço da rua, a cena arma-se com impressionante senso plástico para conferir
beleza a um contexto de pobreza; sem fazer da estetização uma operação
higienizadora, mas, ao contrário, como uma forma de capturar o olhar para onde
tantas vezes se devia.
O cenário resume-se à estrutura de uma
árvore, feita de escada, guarda-chuvas e frutas de tecido, ambos de textura
esburacada, solução altamente expressiva nos campos imagético e semiótico.
Também os figurinos, especialmente o de tia Miséria, mostram a riqueza do
acúmulo de camadas com distintas cores e texturas de materiais desvalorizados.
São as fontes de encanto visual para um espetáculo que se volta à crítica
social, embora apresente um universo mágico, mantendo certo distanciamento – e
tom de frieza – em relação ao espectador, convocado a traçar as relações entre
a alegoria da cena e a realidade ao redor.
“A Pereira...” adapta um conto popular
espanhol de mesmo nome, centrado na alegoria de um embate entre a miséria e a
morte, que afirma a perpetuação da primeira e a necessidade, apesar de tudo, da
última. A potência dos diálogos está na construção poética em frases rimadas,
por vezes cantadas, das quais se colhe aforismos cheios de lirismo e
contundência social, como “a miséria abriga sempre aquele a que toda a gente
angustia” – constatação da exclusão.
A cadência de acontecimentos gerados
pelas visitas de dois meninos famintos, um mendigo e a própria morte, contudo,
está à serviço da efetivação dessa alegoria mais do que de um desenvolvimento
da curva dramática do conflito, que facilitaria a manutenção da atenção
instável da rua – de adultos e crianças. Para os pequenos, a linguagem visual
lúdica é mais acessível do que a narrativa versificada. Para os crescidos,
vibra em cena o poder de síntese sobre a tragédia humana de uma realidade
miserável, associada à perda de controle sobre o alastramento da fome no mundo.
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