As
armadilhas da farsa
Tão
cara à historiografia do teatro mundial, de ampla recepção nos palcos
brasileiros, a irresponsabilidade da farsa é mais complexa do que parece. Os
deslimites que lhe dão razão de ser – a extravagância, o ridículo, a
caricatura, o elogio do baixo-ventre e outras variantes – também podem pregar
suas peças. Cem dias reflete o
transbordamento nos dois sentidos: o fundamento da opção pelo gênero e o escoamento
das consistências formal e temática pelos meandros de um projeto que,
paradoxalmente, faz jus ao nome do Grupo Risco de Teatro e desperdiça parte
considerável de seu potencial.
Notável
e rara a disponibilidade dos criadores ao abraçar um contexto histórico em
terras e mares portugueses que antecedem a vinda da Família Real ao Brasil, no
início do século XIX, e dão notícias das raízes da corrupção endêmica que
atravessou o Atlântico e ainda viceja mais perto do cidadão do que ele talvez
desejaria – é fácil apontar o dedo só para os políticos em Brasília, tão longe
e tão perto.
É
alvissareiro, ainda, que o grupo chame a consciência crítica para si, enquanto
artistas, e a compartilhe a partir da plataforma do cômico. Distinto do recorte
histórico que costuma brotar de processos artísticos em dramas de franzir a
testa, circunspectos.
A
dramaturgia de Otávio Barwinski e Rafael Orsi de Melo transparece referências
geopolíticas, econômicas, sociais e comportamentais da pesquisa que levantaram
para bolar a trama em que dois trapaceiros consanguíneos, os primos Gomes
(Melo) e Aderbal (Rodolfo Lemos), embarcam numa das naus da corte do príncipe
Dom João VI rumo à sua principal colônia extrativista.
Essa
dupla, provavelmente lisboeta, tem um quê do malandro brasileiro e catalisa a
narrativa em sabotagens e tentativas de puxar o tapete um do outro. Os
interesses e as chantagens são sexistas e monetárias, os dois motores capitais.
Há um imbróglio com uma prostituta, Medusa Fogosa, e um conflito ou outro com o
capitão do navio veleiro, ambos interpretados por Barwinski – um capitão com
pinta de Napoleão Bonaparte, militar que comandou as tropas francesas na
invasão a Portugal, motivo da fuga da corte para o Brasil, em 1808.
Diante
desse vasto painel, o espetáculo tenta encontrar um ritmo que corresponda à
condensação dos fatos. Ao mesmo tempo em que não ambiciona soluções didáticas,
a concepção geral prefere atalhos de eficiência duvidosa. A direção de direção
de Daniel Olivetto e diálogos dos atores e coautores concedem à
superficialidade do riso e contrariam o pensamento articulado nas entrelinhas
da peça.
Melo
e Lemos são talentos subaproveitados diante do que já transmitem como
comediantes (em sentido amplo) e tirariam de letra o jogo farsesco que a montagem
insinua. Falta sensatez para sublinhar as expressões física e vocal sem
barateá-las com a ligeirice televisiva reconhecível pelo público, por isso os
nexos esvaziados. É aqui que a armadilha se escancara: a ânsia de ganhar a
plateia com piscadelas quando já a tem nas mãos por meio de outras invenções contidas
no corpo do espetáculo.
Os
artistas de Cem dias chegam a lampejos
surpreendentes como a arara ou portal que provém objetos, adereços e mecanismos
acionados em momentos estratégicos e eficientes enquanto espaço cenográfico
expositivo que estimula o espectador a ver como as coisas funcionam no teatro,
na política, na sociedade.
Alguns
desses achados equivalem a um bálsamo diante do anacronismo nas atuações
frenéticas. Exemplos: a cena em que um dos primos enfia a mão no figurino da
cortesã, pendurado num cabide, e encarna um duplo feminino; e o uso do teatro
de sombra ao final, quando a paródia é breve e enche os olhos.
Com
todo esse material contraditório em mãos e na casa do terceiro ano de formação
o Risco reúne condições e experiências de procedimentos para desempenhar sua
pesquisa continuada e efetivamente transgressiva, independente do gênero.
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