sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Critica - As Pessoas de Minha Pessoa por Valmir Santos

A falta que a alteridade faz

Valentim Schmoeler é Fernando Pessoa, o trio de heterônimos do poeta e ele mesmo, Valentim Schmoeler. A despersonalização dramática que o escritor português concebeu de modo genial para deslocar-se das ideias, sentimentos e emoções do outro, sobretudo em Alberto Caeiro, tem pouco relevo em As Pessoas de Minha Pessoa. O ator não recua da sua personalidade artística em franca mitificação do autor português, abdicando de maiores ambições formais ao escolher as artes cênicas como expressão desse material poético.

Fica evidente o recurso à palavra como veículo seminal dos estados de alma, o caráter devocional. No entanto, as paisagens vão se desbotando porque não encontram a força correspondente nas especificidades do teatro e sua margem infinita de invenção.

Certa vez, em nota sobre a heteronomia, Pessoa afirmou: “Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita”. Esse rumor não trasborda em cena enquanto linguagem.

Quando algum intento estético se insinua, é acanhado, o verbo se impõe. A direção de Rafael Orsi de Melo serve à mesma convicção. Enfeixa sobre o texto um tom absoluto que torna tudo o mais periférico. A luz e a trilha ilustrativas são exemplos da falta de autonomia.

O tratamento realista insiste na reprodutibilidade de época dos figurinos, móveis e até da língua portuguesa mãe. Nada que escape ao imaginário identificável, inclusive na hora de reunir as criações mais célebres dos heterônimos em questão.

Talvez o formato ideal para essa experiência fosse a declamação direta de Schmoeler. A função pedagógica em difundir a arte do “fingidor”. E não o pretexto de encenar uma obra com as perspectivas lírica, épica, dramática e afins na sincera saudação a Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, conforme a ordem de entrada no roteiro antecedida pelo prólogo com a figura de Pessoa em si.

Na semiarena adaptada ao palco, com o público sentado ao redor, a atmosfera intimista, o suor no rosto e os olhos marejados desse veterano do ofício comunicam um ser apaixonado pelas artes literárias e cênicas (à frente da Bagagem Cênica Cia. de Teatro). Ao mesmo tempo, a proximidade expõe o quanto a obsessão pela fidelidade o distancia de uma das naturezas-chave da obra pessoana que é também a de experimentar.
 

Com a impossibilidade de confrontar algum nível de alteridade na visita à obra do escritor que se deixou imortalizar por ela, o espectador que não é de Itajaí consola-se com a oportunidade de conhecer o personagem de si que é Valentim Schmoeler ao tomar o poeta pelas mãos e bebericar uma taça de vinho devidamente acompanhado por copo d’água ao longo da apresentação.

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