quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Critica - Maquina de Dar Certo por Valmir Santos

Desfocalização e método

Um dos paradigmas do texto dramático é a capacidade de expor pontos de vistas. Ao constatar ambiguidades e pluralidades, o observador pode fruir sua leitura, afetar-se. Quando os fios não estão dados, a aventura do espectador resulta, em si, a fricção intertextual que o criador contemporâneo deseja obter, suspendendo os significados e plasmando os significantes. São estes que dão as cartas no espetáculo da Cia. Bruta de Arte, fortemente apoiado nas pulsações físicas, sonoras e visuais (o desenho de luz, sobretudo).

Máquina de dar certo é um título irônico para uma dramaturgia expandida, de epicentro corporal, erguida sob o elogio ao erro. Uma dezena de atuadores confere um prazer incomum de estar em cena, em estado performativo, deflagrando o esgotamento e o fracasso indutores do sistema opressivo a que são psicofisicamente condicionados.

Num roteiro que parece concebido em colaboração (a ficha técnica não informa a dramaturgia não verbal), toma-se os experimentos comportamentais do psicólogo norteamericano Frederic Skinner (1904-1990) para arquitetar um espetáculo pautado por uma voz de comando dissimulada em didatismo. Todos os estímulos de uma ciência que se acredita evolutiva pelo pretendido controle mental ou orgânico são aplicados num ambiente fechado, hostil e sempre em grupo.

A anulação do indivíduo e mesmo o coro como massa de manobra dão lugar às subversões. O dispositivo maquinal – a voz autoritária, de apelo fordista, ferrenha no monitoramente dos testes – é contraposto aos próprios corpos a que tenta anular autonomia. A exaustão reaviva as fisionomias das mulheres e dos homens. A dança e a trilha sonora embalam essas figuras teoricamente combalidas. Elas vibram. Há um prazer reconhecível em contrariar as regras do jogo imposto e várias vezes interrompido; em assumir o “game” e não sucumbir à neurastenia. Naturalmente, as cobaias são incitadas à disputa com o outro, o “concorrente”, mas esses conflitos não chegam a se desenvolver. A instabilidade é o que os une, apesar do eterno retorno à condição que se pensava superada: mudança de posto para o “vencedor” de turno, apartado.

O espetáculo dirigido por Roberto Audio contorna os próprios limites instauradores de uma dramaturgia de confinamento. Filas militares, alinhamentos perpendiculares e rompimento literal da quarta parede com os atuadores tomando os corredores do teatro empoderam a movimentação coreográfica nesse teatro-dança de invocar Pina Bausch. Não chega a ser um levante coletivo, mas a ação física e a fisionomia dos integrantes da companhia – tipos tão diversos e algo surreais – infiltram um mundo paralelo de cadências e jogos cerebrais transmissores de pesquisa artística sólida.

A criação leva às últimas consequências a noção do fazer cênico enquanto artifício,
correlacionando metodicamente sutilezas, engenhosidades e estranhamentos gestuais como resistências à operação desmonte a que as pessoas estão submetidas. A mentira e os simulacros ficam realçados pela marionetização oculta. Afinal, a manipulação do espetacular é hiperbólica. Os mínimos sinais de relatos são abafados – não há vez para voz própria, claro. A maneira de reativar forças é respirar e encontrar janelas dançantes nesse ambiente de exceção, disciplinar, em meios a tantos espasmos e perplexidades. A arte é a válvula de escape. O imaginário contrapõe a ilusão como no caminho amarelo de O mágico de oz.


Em sua primeira década, a Cia. Bruta, de São Paulo, consolidou personalidade com processos conceituais que desfraldam as dobras mais ínfimas de bio, micro e macropolíticas.

Critica - Maquina de Dar Certo por Luciana Romangnolli

Sobre estímulos contagiantes e rarefeitos

A certa altura de "Máquina de Dar Certo", da Cia. Bruta, a vontade é de fazer parte do experimento. A trilha sonora com versões dançantes de músicas como "I Put a Spell on You", "I Feel Good" e "Daddy Cool" contagia: os corpos na plateia sentem o estímulo sonoro e cinético dos movimentos dos atores em coreografias coletivas no melhor estilo Michael Jackson em "Beat It". Entre o musical e a balada, sob luzes coloridas cambiantes, o palco é lugar de diversão.
Mas quem são aqueles homens e mulheres numerados e a agir em grupo como ovelhas num rebanho? A voz feminina em off refere-se a um experimento, outros indícios da encenação sugerem o confinamento e a performance para uma plateia fora, mas é do campo extracênico da sinopse que vem a informação de que a dramaturgia inspira-se nas pesquisas comportamentais de Frederic Skinner sobre o condicionamento humano a partir de estímulos e recompensas. Em tempos de reality show, o experimento com humanos aponta para a espetacularização da vida e a busca pelo reconhecimento atribuído pelo olhar do outro. Um mecanismo fechado destinado a provar uma tese – uma caixa de Skinner.
Sem essa contextualização extracênica, contudo, o olhar do espectador tenta atribuir sentido à aglomeração de desconhecidos que cumprem ações segundo uma dinâmica própria direcionada para a padronização homogênea das condutas ditada por fatores externos indecodificáveis. A tensão estabelecida dá-se entre fazer parte do todo sem nele desaparecer e destacar-se pelo desempenho (ou pela vaidade) sem escapar do padrão, isto é, sem tornar-se a ovelha desgarrada a ser punida pela voz superior. 
Algo se passa no nível do subconsciente sem vir à tona em cena. Aponta para um conflito entre a pré-programação e as manifestações do desejo, estas mesmas que devem ser controladas pela lógica do experimento e que suscitam alarmes sonoros quando se libertam. A música entra como disparadora dos condicionamentos, embora mobilize sempre algo a mais por sua força de afetação dos corpos. Ou seria justamente por essa capacidade de afetação – de ditar ritmos e estados emocionais – que a música os
condiciona? O cantar de "Je Ne Regrette a Rien" evidencia essa contradição como uma canção que entra fora de hora para a expressão subjetiva de uma das participantes, rompendo com a norma.
É cabível dizer que, na rotina do experimento, esses homens e mulheres não vivem, performam. O olhar de fora está presumido em cada ação – seja o do condutor do experimento ou o da plateia ficcional análoga à real, embora nenhum desses como uma alteridade efetiva. As relações extracênicas são dessaturadas tanto quanto as intracênicas: a regra na contracena das figuras é a impessoalidade, aquela tensão já referida do ser grupo em competição individualista, contrária à verdadeira troca intersubjetiva.
Em outras palavras, emana da cena um tom blasé: a sensibilidade embotada pelo excesso de estímulos, a apatia por ter esgotado todas as possibilidades, o tédio sincero ou afetado. A relação dessas figuras com os espectadores é distanciada, resultado da fria impessoalidade que não favorece conexões emotivas e dá acesso nunca ao ser daquelas pessoas, somente às aparências. A exceção é a personagem da atriz peruana Marba Goicochea, cuja sensibilidade se excede.
Esse indecifrável jogo com o espectador nem o coloca em questão a ponto de expor a crueldade do lugar do observador nem permite uma identificação maior com os condicionamentos perpetrados em cena. Faz-se confronto mudo. É daí que surge aquele desejo expresso inicialmente de tomar parte do experimento, de sentir no corpo as pressões dos estímulos – o que não implicaria necessariamente uma participação direta.

Distinto da clareza explicativa de “Em Respeito a Dor” tanto quanto da contundência do discurso performativo de “Esse Corpo Meu” – espetáculos também apresentados no IV Festival Nacional de Teatro Toni Cunha e com os quais partilha o afastamento do modelo dramático em direção a formas livres de predefinições –, “Máquina de Dar Certo”  é um experimento cênico rarefeito que deixa entrever a estranheza da coletividade humana. 

Critica - A Pereira da Tia Miséria por Luciana Romangnolli

Plasticidade captura o olhar para a miséria humana

Diferentemente de estados do Sudeste e Nordeste especialmente, o Paraná não tem tradição forte em espetáculos de rua nutridos pela cultura popular. Em Curitiba, onde se concentra a maior parte da produção – e dos recursos –, o próprio fator climático responde em parte por essa condição, bem como a opção por outros caminhos estéticos mais enraizados na dramaturgia literária ou em experimentações contemporâneas. É surpreendente, pois, o percurso do Núcleo Ás de Paus, de Londrina, no norte paranaense, com “A Pereira da Tia Miséria”, vencedor do prêmio Gralha Azul – o principal do estado, mas nunca antes concedido a uma criação que não fosse produzida na capital.

“A Pereira...” é um espetáculo de rua que se aproxima do imaginário de Ariano Suassuna e de ideias do paraibano para o movimento armorial, tais como a encenação ao ar livre, pela oralidade, de uma narrativa em versos e cantos sobre personagens míticos trajando figurinos imponentes feitos de farrapos. Outra associação possível é com o cruzamento de erudito e popular presente nos trabalhos do Grupo Galpão, com quem partilha ainda características como o uso da perna de pau.

O recurso insere-se como um prolongamento dos corpos dos atores a conferir-lhes estatura irreal e um desafio constante a cada movimento, fundamentais para constituir o aspecto onírico da fábula. Além das pernas-de-pau, os atores portam uma espécie de bonecos-bengalas de uma perna só, ampliando ainda mais as possibilidades do corpo humano desenhar no espaço formas fantasiosas que apelem à imaginação.

Sob a simplicidade demandada pelo espaço da rua, a cena arma-se com impressionante senso plástico para conferir beleza a um contexto de pobreza; sem fazer da estetização uma operação higienizadora, mas, ao contrário, como uma forma de capturar o olhar para onde tantas vezes se devia.
O cenário resume-se à estrutura de uma árvore, feita de escada, guarda-chuvas e frutas de tecido, ambos de textura esburacada, solução altamente expressiva nos campos imagético e semiótico. Também os figurinos, especialmente o de tia Miséria, mostram a riqueza do acúmulo de camadas com distintas cores e texturas de materiais desvalorizados. São as fontes de encanto visual para um espetáculo que se volta à crítica social, embora apresente um universo mágico, mantendo certo distanciamento – e tom de frieza – em relação ao espectador, convocado a traçar as relações entre a alegoria da cena e a realidade ao redor.

“A Pereira...” adapta um conto popular espanhol de mesmo nome, centrado na alegoria de um embate entre a miséria e a morte, que afirma a perpetuação da primeira e a necessidade, apesar de tudo, da última. A potência dos diálogos está na construção poética em frases rimadas, por vezes cantadas, das quais se colhe aforismos cheios de lirismo e contundência social, como “a miséria abriga sempre aquele a que toda a gente angustia” – constatação da exclusão.

A cadência de acontecimentos gerados pelas visitas de dois meninos famintos, um mendigo e a própria morte, contudo, está à serviço da efetivação dessa alegoria mais do que de um desenvolvimento da curva dramática do conflito, que facilitaria a manutenção da atenção instável da rua – de adultos e crianças. Para os pequenos, a linguagem visual lúdica é mais acessível do que a narrativa versificada. Para os crescidos, vibra em cena o poder de síntese sobre a tragédia humana de uma realidade miserável, associada à perda de controle sobre o alastramento da fome no mundo.



Critica - Pereira da Tia Miséria por Valmir Santos

Dialética da fome

A cultura popular “de raiz”, como se diz, será sempre uma inspiração aos criadores realmente dispostos ao bom combate. Ela não é para os fracos que a veem como atalho facilitador. Não à toa, a tradição brasileira é repleta de autores que a têm pelo viés da comédia pensada e curtida na sofisticação. Basta citar Martins Pena, Artur Azevedo e Ariano Suassuna.
                                              
No teatro de rua, então, o gênero é hegemônico quando se trata de dialogar com essas fontes: drama e tragédia raramente confluem para o espaço público. E quando a química (ou a quimera) acontece, o resultado é sempre memorável. Aos exemplos: Romeu e Julieta (1992), do Grupo Galpão (MG); A brava (2007), da Brava Companhia (SP); O amargo santo da purificação: uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella (2008), da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (RS); e O encontro de Shakespeare com a cultura popular: Romeu e Julieta (2010), do Grupo Garajal (CE).

Acrescente-se à lista pessoal (e informal) A pereira da Tia Miséria (2010), do Núcleo Às de Paus, drama inspirado numa das narrativas de domínio público do livro Contos populares espanhóis (2005), organizado por Yara Maria Camillo.

Quem adaptou a peça foi Luan Valero, que prima pela estruturação em versos e não violenta a rima. Valero cumpre com estilo, crítica e beleza a tarefa de contar uma história em perspectiva épica, sem facilitar a vida do espectador e tampouco desprezar potencialidades nas cores e simbologias da palavra, está que nem sempre irradia poeticamente à altura ao ar livre.

No semicírculo da praça-calçadão, os atores valorizam a oralidade-musicalidade mesmo com a incidência do sol em seus rostos durante a apresentação no fim da manhã. Substituições ocorridas em cinco anos de estrada (notamos pelo menos duas) não comprometeram a qualidade do conjunto que assina justamente a encenação coletiva.

A espacialidade cenográfica é delimitada pelo quintal e arvore-título ao centro, feita de material reciclado gerador de rusticidade alinhada ao mote universal da fome. Ela é personagem oculta, o filho da Tia Miséria, batizado Fome, que ganhou o mundo e ainda não voltou. Enquanto o espera, ao lado do cão Sem Nome, ela cuida das peras. A natureza provê os frutos num vilarejo marcado pela carestia. O passatempo de dois moleques da vizinhança é trepar na árvore para comer quando ainda nem é o tempo de colheita.

Do conflito básico com esses peraltas, à chegada de um andarilho que lhe abrirá uma janela de esperança no presente e no futuro, além do embate com a figura da Morte, os fatos sugerem um contexto medieval refletido na visualidade e um nexo absolutamente atual do problema-tema perpetuado no curso da humanidade.

Em seu primeiro espetáculo, os jovens criadores da trupe forjada na Escola Municipal de Teatro de Londrina conseguem a proeza de capturar o interlocutor, mesmo o desavisado pedestre ou o ciclista que cortam o miolo da cena, distraídos. Independente do assunto e da precariedade material – afinal, estamos falando da pobreza extrema –, a fabulação enreda espectadores de todas as idades.

A moral não vem como discurso ou lição, mas perceptível na materialidade da arte que a Ás de Pau dá a ver. A destreza técnica em equilibrar-se em perna-de-pau ou nas quatro “patas-de-pau” do cachorro confere um clima de suspensão em que tudo está na iminência de acabar ou espatifar-se no chão. Por outra, os atravessamentos perpendiculares dos personagens ou figuras que avançam ou adentram as laterais para além da multidão também são abre-alas da força sertaneja, quixotesca.

O retrato humano sem retoques e seus borrões históricos caracterizam o materialismo dialético comungado, também, em versos e cenas de horror. A pereira da Tia Miséria é uma experiência poética dura, feito as pedras de João Cabral de Melo Neto em Morte e vida Severina. Mais um espirituoso teatro de rua para a galeria da memória, um sopro vindo das terras vermelhas do norte paranaense.  

– de novo. A maquiagem (visagismo), os bonecos, as pernas-de-pau, o canto e as evoluções coreográficas são recursos manipulados com efeitos surpreendentes no texto de perspectiva épica.      


Na toada da tradição teatral brasileira a cultura popular teve e permanecerá contando com a adesão dos artistas de todos os tempos. A comédia é gênero por excelência em clássicos de Martins Pena, Artur Azevedo e Ariano Suassuna. Não teatro de rua, el  



A miséria alegórica e protagonista
02 de agosto 2013 | por Clarissa Falbo • Recife
A rua – e a assistência formada pelos que nela transitam, trabalham ou residem – não poderia ser local mais propício para abrigar um espetáculo sobre a miséria. Em contraste, porém, com a carência real das calçadas e das vias, a miséria, a fome e a morte são representadas como alegorias em A pereira da tia miséria.
Tia Miséria é uma senhora pobre e triste cujas posses se resumem a uma pereira. Acompanhada por seu cão sem nome, a velha tenta proteger o patrimônio dos furtos famélicos constantemente realizados pela vizinhança enquanto espera a volta de seu filho Fome, que se extraviou mundo a fora. Quando a Morte, de unhas negras e foice empunhada, se aproxima, a tia a engana e a aprisiona. Miséria sobrevive, mas o custo de sua astúcia é que ninguém jamais morrerá.
As pernas-de-pau, ponto de partida para a pesquisa estética e estruturador da pulsão criativa do paranaense Núcleo Às de Paus, elevam e distanciam as personagens em realidade tão próximas e familiares ao universo das ruas. As estruturas se tornam prolongamento dos corpos, servem de muletas e dão vida a bonecos manipulados pelos atores.
Também promove o distanciamento a composição em versos da dramaturgia de Luan Valero, baseada em um conto popular espanhol. A musicalidade da palavra rimada foi sensivelmente refinada pelas canções executadas em cena. Destacam o tom poético do texto os belos arranjos de Eric D’Ávila, nos quais instrumentos percussivos somam-se às vozes afinadas da trupe – ainda que, vez por outra, não se alcance o volume ideal para o ar livre. A direção da obra é assinada pelo grupo.
Ator do Núcleo Às de Paus em apresentação no Recife
Nada como subverter o tempo frenético e a atmosfera da rua inundando-a com a dramaticidade e a cadência de uma narrativa mais complexa. Há versos cantados que soam como mantras e cumprem mesmo o papel do comentário brechtiano:
O que é desprezível
Não se deve desprezar.
O que é invisível
É preciso enxergar.
Digo de antemão
Esta é a canção
Do universo em expansão.

O Ás de Paus, oriundo das salas de ensaio da Escola Municipal de Teatro de Londrina e representante da novíssima safra paranaense, parece herdar a medida da mistura entre erudito e popular tão cara ao Grupo Galpão (MG) e aos Clowns de Shakespeare (RN). A pereira da tia miséria (2010), seu primeiro espetáculo, foi agraciado com o Troféu Gralha Azul, importante premiação da cena teatral no Paraná, e participa em 2013 do Festival Palco Giratório, promovido pelo Sesc nacional, sendo levado a cidades de todo o país.

Critica - O Quadro de Todos Juntos por Luciana Romangnolli

Formas animadas para afetos perversos

Ao longo da última década, parte significativa dos espetáculos produzidos na cidade de Belo Horizonte a conquistar projeção nacional apresentava certa qualidade afetiva. Como toda generalização, esta é, claro, uma simplificação, guardadas infinitas variantes, no intuito de reconhecer uma atmosfera em comum, já em transformação nas criações desses mesmos grupos em anos mais recentes. Singular na cena mineira desde a adoção de uma linguagem de teatro de bonecos para adultos, o grupo Pigmaleão Escultura que Mexe se distingue desse conjunto pela produção de afetos perversos. Assim, joga luz sobre outro aspecto cultural que a cordialidade costumeira recobre: a hipocrisia da tradicional família mineira. Sem dúvida é possível substituir o dado geográfico da expressão sem alterar os outros termos, mas resiste entre as montanhas de minério condições especiais para uma dramaturgia rodrigueana que mereceriam estudo sócio-antropológico. Pernambucano como era o autor das tragédias cariocas, Nelson Rodrigues se sentiria em família.
Espancar docemente – embora seja o lema de outro grupo – descreve perfeitamente a atmosfera criada pelo Pigmalião em “O Quadro de Todos Juntos”. Mas o espancamento aqui é mais brutal e deixa sequelas. A evidência mais à superfície de tal contradição é o uso de máscaras e bonecos de porcos, fabricados com riqueza de detalhes. Nem cães e gatos, nem corvos: os porcos são bichos dúbios, entre a graça de um filhote e a imagem grotesca num lamaçal. Na forma de bonecos afáveis, a ternura é reforçada pelo modo como gesticulam, como o porquinho enxuga uma lágrima e cutuca a mãe ou como a porquinha carrega a tiracolo um ursinho. Inocência violada pela violência das relações familiares, vistas através de uma lupa que amplia o ciúme, o desejo, a crueldade e a indiferença entre pais e filhos, irmãos e irmãs.
O flash da câmera aciona a hipocrisia ao gerar a pose em trajes de domingo para o retrato da família perfeita. A dramaturgia se constitui desses quadros fixos fotográficos entremeados por cenas expressionistas do cotidiano familiar, sugestivas de violências físicas e psicológicas terríveis. Na sequência de maus-tratos praticados por adultos e crianças forja-se o ciclo do nascer do trauma e do despertar da crueldade em cada nova geração. O abandono afetivo e o abuso cometido por quem é mais íntimo molda a personalidade dos pequenos, como se vê no olhar do porquinho deixado de lado ou na ação na porquinha que reproduz no urso de pelúcia o ultraje sofrido. Pelo poder de captura do tempo, próprio da fotografia, o repetir dos flashes deixa uma sensação memorialista de presente tornado passado. Ou, ao menos, de um apontar para a posterioridade (esta à qual sempre se destinam as fotos), para o ciclo que não acaba e, mesmo que cesse, deixa marcas.
Tais dinâmicas relacionais entre gerações ecoam temas psicanalíticos, remetem a complexos freudianos, sem, contudo, constituir um discurso cênico psicologizante, pois operam no nível da sugestão e da irracionalidade. Tal como na “Filosofia da Alcova”, de Marquês de Sade, obra propulsora (e homônima) do espetáculo anterior do grupo; em “O Quadro de Todos Juntos” o foco recai sobre a sexualidade desviante das normas sociais e, neste caso, escassa em consentimento. O teatro de animação permite um tratamento mais livre e imaginativo dessas temáticas adultas tabus, pois o boneco surge como uma figura transumana, capaz de transitar pelas zonas mais sombrias das relações humanas com poesia, sustentado simultaneamente peso e leveza.
A linguagem desenvolvida pelo Pigmalião é de elaboração sofisticada, com recurso simultâneo à atuação de atores com máscaras e a bonecos manipulados, sob uma iluminação direcionada que inunda o entorno em breu. Tudo isso em justa sincronia com uma trilha sonora constante, misto de instrumental, canto lírico, ruídos e grunhidos, que funcionam tanto para gerar tensão (como em filmes mudos ou de terror) quanto como uma espécie de gromelô, a instigar a imaginação do espectador para atribuir significado ao que vê e ouve. A encenação, assim, faz-se partitura musical a ser seguida à risca por atores-manipuladores que, como bailarinos clássicos, não podem perder os tempos.
Esse ritmo interno rigoroso é cumprido pelos atuantes, que dão vida à matéria morta e desaparecem no quadro escuro como bem se espera de um manipulador. Há, porém, outra camada rítmica que ainda pode ser lapidada – aquela resultante da relação entre o microcosmo de cada cena e a macroestrutura da sucessão de quadros, cuja toada constante atinge um ponto de previsibilidade e poderia se favorecer do modular de gradações. Um ponto-chave que mereceria ser mais enfatizado, por exemplo, é o revelar do boneco sob a máscara, potencial gerador de curto-circuito cognitivo com fortes desdobramentos simbólicos.
Para o espectador que busca distração agradável no teatro, “O Quadro de Todos Juntos” pode ser uma experiência indigesta. O gesto do grupo em relação o público é o gerar de desconforto, a ilusão de um pesadelo, mas sempre na tensão com o prazer estético proporcionado pela linguagem incontornavelmente lúdica dos bonecos.

Critica - O Quadro de Todos Juntos por Valmir Santos

Zooteatralidade

De Esopo a Charles Darwin, estendendo a Franz Kafka e George Orwell, a condição humana encontra na animalidade espelhamentos e contrastes que muito interessam aos campos da investigação e da criação em arte, filosofia e ciência. O espetáculo do coletivo mineiro Pigmalião Escultura Que Mexe explora esse terreno de maneira exasperante.

Alude à estirpe do autodeclarado “teatro desagradável” de Nelson Rodrigues, guardadas as proporções de que o drama aqui assenta sobre outros desejos: o das formas animadas. O boneco e a irracionalidade tocam feridas familiares ao bicho homem e ungem uma espécie de zooteatralidade para tempos de crise de representatividade que, sabe-se, começa dentro de casa e ganha o espaço público.

A transversalidade artes cênicas/artes visuais coloca a família disfuncional em outro patamar de relação com o espectador que não o mero código psicológico. As situações de abuso, a hipertrofia dos vínculos e a violenta codependência desde a primeira infância constituem, por si só, um material emocionalmente explosivo.

O quadro de todos juntos vai a fundo nesses subterrâneos e se deixa acompanhar por arquiteturas visuais e sonoras indicativas de como o teatro de formas animadas tem evoluído em abordagens para o público adulto em certas praças brasileiras, caso da Belo Horizonte natal do Pigmalião, a mesma do Giramundo, núcleo paradigmático da pesquisa com bonecos em mais de quatro décadas.

A fisionomia suína realista é a tônica nos bonecos e nas máscaras em parte dos atores. Em alguns deles, a manipulação direta é uma extensão do próprio corpo, fusão que lembra a figura mitológica do minotauro: em vez da cabeça de touro, temos a cabeça de porco e o tronco confeccionados. Da cintura para baixo, carne e osso.

Apesar de fonte de alimento apreciada em muitas mesas, o porco é comumente associado à imagem negativa da sujeira, do mau-caratismo. Em cena, o instinto selvagem que pauta a relação do macho, da fêmea, das crias e dos agregados está longe de digestível. Sem a âncora da palavra, o espectador é instigado a partir das sensações pictóricas e sonoras. Não há estrutura cenográfica, mas um desvanecer em penumbras e contraluz passíveis do lugar do inconsciente.
É um espanto que o coletivo ignore em sua ficha técnica o artista ou os artistas responsáveis pelo desenho sonoro poderoso na indução ao raciocino da fala por meio de ruídos e grunhidos, ao que parece programados para o tempo da ação dos manipuladores e, às vezes, incidentais. A sonoridade onisciente – algum grau de silêncio ajudaria a processar o dilacerar constante – corrobora tendência do roteiro a redundar sequências como o ato de amamentar; o atrito pai/filho, mãe/filha; e o espocar do flash da máquina fotográfica simulado pela iluminação.

Plena em conteúdos arquetípicos, ímãs primais, a dramaturgia não-verbal de Eduardo Felix (codiretor da obra com Igor Godinho) atinge seus melhores momentos quando lança mão de percursos e quebras que transcendem os níveis patológicos expostos. Afinal, o que fazer depois de emergir os desvios dos animais demasiado humanos desse clã? Felizmente, não há saídas morais ou prejulgamento na elaboração ficcional. Constata-se e celebra-se a dança das linguagens sem prescrição.

Moram lá nos interstícios da autofagia e da visão da mulher como máquina procriadora – sob a complacência secular das sociedades matriarcais – o pensamento estético desestabilizador que o Pigmalião produz. Embrião de uma cena curta (15 minutos) intitulada O quadro de uma família (2013), o espetáculo O quadro de todos juntos (2014) exemplifica o interesse do coletivo por caminhos desbravadores em oito anos de trabalho e pesquisa.

Em tempo: na mitologia grega, o rei Pigmalião é um escultor exímio cujo amor por uma de suas criações, Galateia, convenceu a deusa Afrodite a atender ao seu pedido e dar vida à mulher outrora de marfim com quem ele finalmente se casou e teve dois filhos. Ou pode ser lido também como o movediço terreno da idealização... O septeto da criação em análise manipula os bonecos com um registro que pode dar a impressão de “grosso”, numa passagem ou outra, mas isso deve estar correlacionado à imperfeição como estratégia, dadas as distorções vasculhadas.

domingo, 16 de agosto de 2015

Programação 16/08/2015

Confira a programação hoje:


Espetáculo: MundoMudo – Companhia Azul Celeste – São Paulo/SP


Sinopse: MUNDOMUDO investiga a relação cultural entre o velho e o novo por meio dos valores difundidos na sociedade contemporânea. Faz uma reflexão sobre tudo o que nós aprendemos como valor, como crença, como cultura, seja numa dimensão maior ou menor, tornam-se nossas origens de referências que irão comandar nossa consciência e esta determinará nosso comportamento. Um mergulho que fala de homens pequenos aprisionados em um espaço enorme, religados repetidamente pelo jogo estabelecido na convivência e na necessidade um do outro. Jogo compreendido como jogo teatral, cujas regras mantêm-se no seu mínimo e irredutível viger: um início, uma duração, um final, e a repetição de todo o processo em dias seqüentes. Se no início está o fim, se a duração arrasta instantes inúteis, se o final só remata pelo cair do pano (ou trapo), deixando sem desfecho a história, não importa, as regras impõem-se, e os personagens, atônitos, submetem-se ao jogo como ao destino. MUNDOMUDO  significa o fim deste jogo, que se mantém como remedo do teatro passado, e vislumbra, na devastação que lhe circunda, formas fantasmagóricas para um teatro futuro.

Local: Teatro Municipal de Itajaí
Horário: 20:30

Lotação: 505 Lugares.

sábado, 15 de agosto de 2015

Ponto de Encontro 15/08!!!

 SÁBADO – 15/08
Happy Hour ANDRÉ ONN (voz e violão) – A partir das 19 horas

FESTA DO CACHORRO LOCO com a Banda D´OUTROLADO
A partir das 22horas
Entrada Franca
A BANDA D´OUTROLADO (Paulo Pinheiro, Rafaelo de Góes, Gean Simas e Amauri), anima a Festa do Cachorro Loco do Bar ZéPelin Itajaí. No repertório clássicos do rock nacional e internacional.

Programação 15/08/2015

Confira a programação de hoje:


Espetáculo: A Pereira da tia Miséria – Grupo Às de Paus – Londrina/PR


Sinopse: A Fome personificou-se em uma criança nascida da Miséria, separou-se de sua mãe e, desde então,
 percorre o mundo trazendo sofrimento a todos. Tia Miséria, no dia em que deveria morrer, engana a Morte, que acaba ficando presa em sua árvore. Em um acordo feito diante do olhar de todos, Tia Miséria liberta a Morte e pede em troca que a sua vida não seja levada. Decide, então, viver ingenuamente procurando pelo seu filho para que, somente junto dele, possa abandonar este mundo que nunca os quis.


Local: Rua Hercílio Luz, Centro, Itajaí – SC. Em frente a Casa da Cultura Dide Brandão.
Horário: 11:00
Classificação etária: Livre.

Duração: 50 minutos
Ficha técnica:
Direção: Núcleo Ás de Paus
Texto: Luan Valero
Concepção e Direção Musical: Eric D’Ávila
Figurinos: Alex Lima
Cenografia e Bonecos: Rogério Costa e Alex Lima
Elenco:
Adalberto Pereira
André Demarchi
Camila Feoli
Rebeca Oliveira de Carvalho
Rogério Costa
Thunay Tartari
Contrarregra: Artur Junges.
Produção: Núcleo Ás de Paus.


Espetáculo: A máquina de dar certo – Cia Bruta – São Paulo/SP

Sinopse: Pessoas trancadas em um cômodo são submetidas a uma série de estímulos sonoros e visuais para a espetacularização do condicionamento humano. Como nos experimentos de Frederick Skinner, elas são constantemente testadas: têm que executar as tarefas e coreografias determinadas por um comando cuja identidade é desconhecida. 

Local: Teatro Municipal de Itajaí
Horário: 20:30          
Classificação etária: Livre.

Duração: 80 minutos.
Lotação: 505 Lugares.

FICHA TÉCNICA
Direção: Roberto Audio
Atores: Ana Lúcia Felippe, Angela Ribeiro, Dagoberto Macedo, Marba Goicochea, Paulo Maeda, Ricardo Socalschi, Taiguara Chagas, Teka Romualdo, Thammy Alonso e Wanderley Salgado.
Assistente de Direção: Paulo Maeda
Iluminação: Paulo Maeda e Mário Spatziani
Direção de movimento: Fabiano Benigno
Trilha Sonora: Cia. Bruta de Arte
Edição de trilha: Thammy Alonso e Diego Rodda
Música Original: Helder da Rocha
Figurinos: Angela Ribeiro e Melissa Campagnolli
Fotos: Giorgio D’Onofrio
Projeto Gráfico: Angela Ribeiro
Produção: Cia. Bruta de Arte 

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Critica - As Pessoas de Minha Pessoa por Valmir Santos

A falta que a alteridade faz

Valentim Schmoeler é Fernando Pessoa, o trio de heterônimos do poeta e ele mesmo, Valentim Schmoeler. A despersonalização dramática que o escritor português concebeu de modo genial para deslocar-se das ideias, sentimentos e emoções do outro, sobretudo em Alberto Caeiro, tem pouco relevo em As Pessoas de Minha Pessoa. O ator não recua da sua personalidade artística em franca mitificação do autor português, abdicando de maiores ambições formais ao escolher as artes cênicas como expressão desse material poético.

Fica evidente o recurso à palavra como veículo seminal dos estados de alma, o caráter devocional. No entanto, as paisagens vão se desbotando porque não encontram a força correspondente nas especificidades do teatro e sua margem infinita de invenção.

Certa vez, em nota sobre a heteronomia, Pessoa afirmou: “Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita”. Esse rumor não trasborda em cena enquanto linguagem.

Quando algum intento estético se insinua, é acanhado, o verbo se impõe. A direção de Rafael Orsi de Melo serve à mesma convicção. Enfeixa sobre o texto um tom absoluto que torna tudo o mais periférico. A luz e a trilha ilustrativas são exemplos da falta de autonomia.

O tratamento realista insiste na reprodutibilidade de época dos figurinos, móveis e até da língua portuguesa mãe. Nada que escape ao imaginário identificável, inclusive na hora de reunir as criações mais célebres dos heterônimos em questão.

Talvez o formato ideal para essa experiência fosse a declamação direta de Schmoeler. A função pedagógica em difundir a arte do “fingidor”. E não o pretexto de encenar uma obra com as perspectivas lírica, épica, dramática e afins na sincera saudação a Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, conforme a ordem de entrada no roteiro antecedida pelo prólogo com a figura de Pessoa em si.

Na semiarena adaptada ao palco, com o público sentado ao redor, a atmosfera intimista, o suor no rosto e os olhos marejados desse veterano do ofício comunicam um ser apaixonado pelas artes literárias e cênicas (à frente da Bagagem Cênica Cia. de Teatro). Ao mesmo tempo, a proximidade expõe o quanto a obsessão pela fidelidade o distancia de uma das naturezas-chave da obra pessoana que é também a de experimentar.
 

Com a impossibilidade de confrontar algum nível de alteridade na visita à obra do escritor que se deixou imortalizar por ela, o espectador que não é de Itajaí consola-se com a oportunidade de conhecer o personagem de si que é Valentim Schmoeler ao tomar o poeta pelas mãos e bebericar uma taça de vinho devidamente acompanhado por copo d’água ao longo da apresentação.

Ponto de Encontro 14/08!!!

SEXTA – 14/08
Happy Hour RAFAELO DE GÓES (voz e violão) – A partir das 19 horas

SAMBA DE BÁRbara – A partir das 22 horas
Entrada Franca

A cantora Bárbara Damásio apresenta o projeto Samba de BARbara, onde brinca com a filosofia do samba de bar, inspirada em cantores como: Arlindo Cruz, Chico Buarque, Maria Rita, Martinália, Roberta Sá e outros. Nesta Roda de Samba, Bárbara Damásio (voz e pandeiro) será acompanhada pelos músicos: Willian Goe (bateria e percussão) e Rafaelo de Góes (violão).
A densidade da pesquisa musical desenvolvida pela musicista Bárbara Damásio impressiona se considerarmos os seus apenas 28 anos. A artista que iniciou seus estudos em música aos sete anos, considera o marco para a carreira profissional sua apresentação no show de abertura de Leny Andrade, no Festival de Música de Itajaí, em 2007. Foi também a partir de 2007 que passou a conceber projetos que culminaram nos espetáculos: "Bárbara Canta Chico" (repertório composto exclusivamente de canções do Chico Buarque) - 2007/2008; "Na Beira do Roçado" (em homenagem aos ritmos do sertão) – 2009; e "Você é mesmo esta Flor" (proposta apresentada para esta turnê) - 2010.
O show “Você é mesmo essa flor”, que contou com as participações de Guinha Ramires (violão), Rubens Azevedo (sopros) e da cantora Elza Soares, foi concebido pela cantora Bárbara Damásio e apresentado no Teatro Municipal de Itajaí, em junho de 2010. No repertório, músicas de artistas catarinenses por nascimento ou opção. O resultado foi registrado no DVD “Você é mesmo essa flor”, lançado em 2014.

Critica - As Pessoas de Minha Pessoa por Luciana Romagnolli

Uma reverência às várias faces de um fingidor

Tão escasso é o espaço para a poesia em nossos dias, arte que entre os modernistas atingiu altíssima elaboração estética antes de desconstruções mais radicais ao longo do século XX, que ouvir generosos trechos da obra de Fernando Pessoa é um prazer estético por si só significativo. Falar da vastidão da obra do poeta português é pouco quando são muitas obras em uma; cada qual com seus traços formais, éticos, cosmológicos e subjetivos singulares. Mares profundos que apontam na superfície da costura dramatúrgica do monólogo “As Pessoas de Minha Pessoa”, de Valentim Schmoeler.
O veterano ator, pioneiro formador do teatro itajaiense, reverencia a poesia e a personalidade de Pessoa e seus heterônimos. Centrado nos versos, o espetáculo afasta-se do formato recital para investir na interpretação – tantos da palavra poética quanto dos personagens Fernando, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro. Desse modo, sustenta-se nas convenções teatrais e num registro de representação mimético, encaixado na forma dramática tradicional, embora tensionada pelo lirismo literário.
A construção do(s) personagem(ns) faz-se sobretudo pela imitação cuidadosa do sotaque português e pela corporeidade austera de um senhor do século passado. Apesar da opção mimética, o Pessoa de Valentim personifica uma figura distinta do imaginário comum produzido pelos registros que se tem do poeta, morto precocemente aos 47 anos. Um homem mais maduro – nesse sentido, talvez, misto das idades de seus heterônimos e da pessoa de Valentim –, de modos cerimoniosos, cujas alternâncias de personalidade são marcadas por variações no figurino e de tonalidade do humor, mantendo sempre um tom passadista, acentuado pela construção do espaço cênico como uma síntese realista do gabinete do escritor.
A ação é reduzida, visto que prevalece a alusão pela palavra – é desta que hão de vir as imagens impregnadas nos poemas, pelo apelo à razão e à emoção. Valentim prima pelo bem dizer do texto, transformando versos líricos ou narrativos em monólogos e diálogos dramáticos, com uma forte carga interpretativa acompanhada do certo didatismo, não somente nas apresentações dos heterônimos, mas também nas entonações explicativas e ilustrativas dos significados expressos pelas palavras. A direção econômica de Rafael Orsi de Melo deixa espaço para a centralidade da atuação; e rege todo o espetáculo uma lógica ilustrativa, pela qual as camadas expressivas reiteram-se, especialmente notável na gestualidade e na entonação do ator tanto quanto na música de fundo.
Por vezes, sente-se também a literalidade na interpretação de alguns versos cujos sentidos deslizam ambíguos numa leitura subjetiva. A ironia presente em poemas como “Todas as cartas de amor são ridículas” é substituída então por uma dramatização enfática, exaltada. Num escrito como o “Poema em linha reta (“Nunca conheci quem tivesse levado porrada”....), esta voltagem representativa encontra o tom para conferir fragilidade àquele homem em cena. As personalidades dos heterônimos misturam-se aos poemas, interferindo em suas tonalidades. Álvaro de Campos talvez seja o mais afetado por essa operação, pois que a acidez sagaz de seu olhar sobre o mundo recobre-se do mau-humor que o caracteriza como personagem.
Heterônimos adentram o pequeno corredor entre as plateias numa ordenação linear de quem inicia o espectador na poesia do mestre português. Para isso, busca uma relação cordial com o público. A somatória de versos atribui coerência narrativa às inter-relações semânticas, de modo que a passagem de um a outro é feita coloquialmente – mesmo que, na dramatização de poemas inteiros tornados cenas, as citações-aforismo, tal qual “tudo vale a pena se a alma não é pequena” (que se emancipou dos outros versos sobre a travessia marítima), destoem pela excessiva repetição, que os faz refrão imediatamente reconhecível. Com a força e a superficialidade dessa condição.

Representar um sujeito com a genialidade expressiva de Fernando Pessoa costuma colocar atores de uma vertente mais clássica em posição de reverência. Não é diferente em “A Pessoa de Minha Pessoa”. A liberdade de apropriação e reinvenção vai a contrapelo da deferência; enquanto esta define as fronteiras de uma representação de anseios realistas.

Programação 14/08/2015

Confira a programação de hoje:


Espetáculo: O quadro de todos juntos – Pigmaleão, esculturas que mexem – Belo Horizonte/MG


Sinopse: Uma família posa para um retrato. O instante de um flash revela além da superficialidade. Mostra a frágil estrutura por trás dessa imagem perfeita. Segredos postos ao chão. Suspensão do tempo. Cada um de seus integrantes expõe seus mais íntimos e secretos desejos. Todos são espelhos. Todos juntos. Um encontro de família em que a realidade, o simulacro e o delírio confrontam-se em um quadro mais que verdadeiro.

Local: Teatro Municipal de Itajaí
Horário: 20:30
Classificação etária: 16 anos.

Duração: 60 minutos.
Lotação: 505 Lugares.

Ficha técnica:
Autor: Eduardo Felix
Direção: Eduardo Felix e Igor Godinho
Criação de bonecos: Eduardo Felix
Construção de bonecos, cenografia e adereços: Aurora Majnoni, Cora Rufino, Diogo Netto, Eduardo Felix, Igor Godinho, Leonardo Martins, Liz Schrickte, Michelle Campos, Mauro Carvalho, Mariana Teixeira, Hugo Honorato, Douglas Pêgo, Camila Polatscheck
Elenco: Aurora Majnoni, Cora Rufino, Eduardo Felix, Liz Schrickte, Mauro Carvalho, Mariana Teixeira e Marina Arthuzzi
Figurinos: Maria do Céu Viana.
Iluminação: Igor Godinho

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Critica - Esse Corpo Meu? por Luciana Romagnolli

Uma poética da libertação dos corpos

É próprio da performance como campo de conhecimento superar o

logocentrismo, que concentra o saber humano somente na razão e nos
discursos, e o pensamento binário, que constitui pares dicotômicos
hierárquicos e excludentes, como sujeito/objeto, mente/corpo, razão/emoção,
homem/mulher, masculino/feminino. Com isso, não somente valoriza os
saberes do corpo, mas coloca em xeque questões de gênero e identidade.

A performatividade é um conceito sobre o qual muitos já escreveram. Dentre
elas, Judith Butler, no viés do feminismo e da teoria queer, pensando o
processo de constituição do gênero por meio da internalização das normas do
que é ser homem ou ser mulher, manifestas nos corpos.  E Josette Féral e
Erika Fischer-Lichte, ao apresentarem teatro performativo como aquele no qual
a presença sobrepõe a representação.

“Esse Corpo Meu”, criação da Téspis Cia de Teatro, de Itajaí, com a Periplo
Compañia Teatral, de Buenos Aires, trafega por esses dois territórios, da
performatividade de gênero e teatral, com admirável habilidade em colapsar a
oposição entre forma e conteúdo. Max Reinert e Denise da Luz corporificam os
estereótipos do masculino e do feminino e os lançam num jogo de intercâmbios
e mutações, que desestabilizam o binarismo dessa oposição, mostrando
possibilidades transgressoras e transitórias.

Trans. Eis o prefixo-chave, já transformado em conceito. Remete ao universo
da diversidade sexual, nas figuras de travestis e transexuais, não como novas
categorias estanques, mas, justamente, como a liberdade de transcender
categorizações, transitar “entre”, “além” dos polos dos binômios. Nesse sentido,
além de um movimento no campo dos direitos humanos fundamental em
nossos tempos, o “trans” transpõe qualquer gueto para afirmar a liberdade do
ser, a possibilidade de desvencilhar-se dos restritos padrões normativos da
constituição da identidade. Assim, liberta cada indivíduo de experimentar sexo
e gênero como aprisionamento.  

Em Belo Horizonte, “Esse Corpo Meu” encontra um espelho: o espetáculo
“Trans”, do coletivo This is noT, realizada pelos performers Guilherme Morais e
Ana Luísa Santos. As coincidências são várias, desde o diálogo com a
argentina, a partir das pesquisas sobre identidade de gênero da ONG Futuro
Transgenérico e da artista trans Susy Shock, até questões formais mais
específicas, como as imagens do duplo, configurada pelos atuantes, e a
simultânea frente de batalha nos campos da linguagem, da imagem e do corpo.

Ao traçar outras conexões entre o espetáculo da Téspis se a cena teatral
brasileira mais contemporânea, percebe-se a força estética e ética de um
conjunto de trabalhos. Ainda na capital mineira, uma das criações mais
desafiadoras do ano passado foi a cena “Não conte comigo para proliferar
mentiras”, dirigida por Alexandre de Sena, somando perspectivas críticas de
cor, classe e gênero; e “Rosa Choque”, sob a direção de Cida Falabella, e
“Calor na Bacurinha”, quando dirigida por Marina Viana, embora não abracem
frontalmente a questão trans, desconstroem estereótipos da performance de
gênero e do ser mulher. Já em Curitiba, há os trabalhos da Selvática Ações
Artísticas, dentre os quais “As Tetas de Tirésias”, mito transgênero primordial,
lembrado também no espetáculo de Itajaí.

O que faz desses trabalhos tão desafiantes para o espectador – falando
especificamente de “Esse Corpo Meu” também –, é a construção dramatúrgica,
energética e espetacular não de uma alegação, certeza ou defesa de ponto,
cristalizadores das ideias e das ações, mas de um questionamento. Uma crise.
Uma indagação.

Para isso, é determinante a não coincidência entre a cena visual e a cena
sonora – entre os movimentos dos corpos presentes e as vozes
desencarnadas em off. O tratamento poético dado às palavras mas também
sua forma de emissão, em eco, entre ruídos sonoros que remetem ao futurismo
oitentista de ciborgues transumanos. O caráter simbólico dos movimentos dos
atuantes, construídos numa operação de estilização que transforma os gestos
mais cotidianos, clichês de gênero, em estranhamentos.

A expressividade corporal de Max e Denise delineia-se plástica e
discursivamente como produtora de imagens impregnadas de simbolismo.
Vestir uma roupa corresponde a vestir um papel social, ou igualmente desvesti-
los, e o preparo corporal de ambos permite o livre trânsito pela gramática do
feminino e do masculino. Quando finalmente as gestualidades se confundem,
inclassificáveis, os braços enfim se soltam, livres dos gestos pré-programados
da moça e do macho, e dançam explorando o espaço.

A cena da construção da mulher perfeita é exemplar: impressiona o quanto se
reconhece do ideal feminino socialmente aceitável no frankstein-mudo. Este e
outros momentos ainda fazem pensar sobre a complexa relação entre a
construção do feminino pelo corpo-mulher e pelo corpo-homem. A diva loira
como algo do qual a mulher precisa se libertar, mas que o corpo-homem, se
não cisgênero nem heteronormativo, almeja como libertação.

Corpos e sons geram uma atmosfera sinestésica, uma sensibilidade particular,
de uma delicadeza estranha, leve acidez afetiva a corroer pouco a pouco as
certezas do espectador. O que se faz no palco, segundo o próprio texto, é a
paródia da paródia da paródia. O humano que imita o humano que imita o
humano que imita. As figuras em cena insistem em risos satíricos – riem de si
ou de nós? Recobrem com uma camada de cinismo tudo o que mostram.

Na apresentação realizada no IV Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, a
presença de uma turma de estudantes na plateia extravasou o difícil convívio
desse tipo de proposição cênica com um público indisposto ao confronto
estético, manifesto no fiufiu sexista, na surdez e na cegueira eletivas para o
que não se quer enfrentar – atitudes comuns a outros estratos da sociedade
menos dispostos a se autodenunciarem em gritos adolescentes.

Diante de cenas sugestivas como a bolinha que repetidamente rola do homem

em direção ao meio das pernas da mulher e o brincar de carrinho e de boneca,
entrevê-se a puerilidade da heteronormatividade castradora. Mas “Esse Corpo
Meu” não trata o espectador como criança. O cinismo é um modo de olhar para
esse indivíduo infantilizado socialmente pela simplificação normativa,
padronizada e binária do mundo como o adulto que ele é.

O espectador olha para a cena ou a cena olha para o espectador?