Dialética da fome
A
cultura popular “de raiz”, como se diz, será sempre uma inspiração aos
criadores realmente dispostos ao bom combate. Ela não é para os fracos que a veem
como atalho facilitador. Não à toa, a tradição brasileira é repleta de autores que
a têm pelo viés da comédia pensada e curtida na sofisticação. Basta citar Martins
Pena, Artur Azevedo e Ariano Suassuna.
No
teatro de rua, então, o gênero é hegemônico quando se trata de dialogar com essas
fontes: drama e tragédia raramente confluem para o espaço público. E quando a
química (ou a quimera) acontece, o resultado é sempre memorável. Aos exemplos: Romeu e Julieta (1992), do Grupo Galpão
(MG); A brava (2007), da Brava
Companhia (SP); O amargo santo da
purificação: uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do
revolucionário Carlos Marighella (2008), da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui
Traveiz (RS); e O encontro de Shakespeare
com a cultura popular: Romeu e Julieta (2010), do Grupo Garajal (CE).
Acrescente-se
à lista pessoal (e informal) A pereira da
Tia Miséria (2010), do Núcleo Às de Paus, drama inspirado numa das narrativas
de domínio público do livro Contos
populares espanhóis (2005), organizado por Yara Maria Camillo.
Quem
adaptou a peça foi Luan Valero, que prima pela estruturação em versos e não
violenta a rima. Valero cumpre com estilo, crítica e beleza a tarefa de contar
uma história em perspectiva épica, sem facilitar a vida do espectador e
tampouco desprezar potencialidades nas cores e simbologias da palavra, está que
nem sempre irradia poeticamente à altura ao ar livre.
No
semicírculo da praça-calçadão, os atores valorizam a oralidade-musicalidade
mesmo com a incidência do sol em seus rostos durante a apresentação no fim da
manhã. Substituições ocorridas em cinco anos de estrada (notamos pelo menos
duas) não comprometeram a qualidade do conjunto que assina justamente a
encenação coletiva.
A
espacialidade cenográfica é delimitada pelo quintal e arvore-título ao centro,
feita de material reciclado gerador de rusticidade alinhada ao mote universal
da fome. Ela é personagem oculta, o filho da Tia Miséria, batizado Fome, que ganhou
o mundo e ainda não voltou. Enquanto o espera, ao lado do cão Sem Nome, ela
cuida das peras. A natureza provê os frutos num vilarejo marcado pela carestia.
O passatempo de dois moleques da vizinhança é trepar na árvore para comer
quando ainda nem é o tempo de colheita.
Do
conflito básico com esses peraltas, à chegada de um andarilho que lhe abrirá
uma janela de esperança no presente e no futuro, além do embate com a figura da
Morte, os fatos sugerem um contexto medieval refletido na visualidade e um nexo
absolutamente atual do problema-tema perpetuado no curso da humanidade.
Em
seu primeiro espetáculo, os jovens criadores da trupe forjada na Escola
Municipal de Teatro de Londrina conseguem a proeza de capturar o interlocutor,
mesmo o desavisado pedestre ou o ciclista que cortam o miolo da cena,
distraídos. Independente do assunto e da precariedade material – afinal,
estamos falando da pobreza extrema –, a fabulação enreda espectadores de todas
as idades.
A
moral não vem como discurso ou lição, mas perceptível na materialidade da arte
que a Ás de Pau dá a ver. A destreza técnica em equilibrar-se em perna-de-pau
ou nas quatro “patas-de-pau” do cachorro confere um clima de suspensão em que
tudo está na iminência de acabar ou espatifar-se no chão. Por outra, os atravessamentos
perpendiculares dos personagens ou figuras que avançam ou adentram as laterais
para além da multidão também são abre-alas da força sertaneja, quixotesca.
O
retrato humano sem retoques e seus borrões históricos caracterizam o materialismo
dialético comungado, também, em versos e cenas de horror. A pereira da Tia Miséria é uma experiência poética dura, feito as
pedras de João Cabral de Melo Neto em Morte
e vida Severina. Mais um espirituoso teatro de rua para a galeria da
memória, um sopro vindo das terras vermelhas do norte paranaense.
–
de novo. A maquiagem (visagismo), os bonecos, as pernas-de-pau, o canto e as
evoluções coreográficas são recursos manipulados com efeitos surpreendentes no
texto de perspectiva épica.
Na
toada da tradição teatral brasileira a cultura popular teve e permanecerá contando
com a adesão dos artistas de todos os tempos. A comédia é gênero por excelência
em clássicos de Martins Pena, Artur Azevedo e Ariano Suassuna. Não teatro de
rua, el
A
miséria alegórica e protagonista
02
de agosto 2013 | por Clarissa Falbo • Recife
A
rua – e a assistência formada pelos que nela transitam, trabalham ou residem –
não poderia ser local mais propício para abrigar um espetáculo sobre a miséria.
Em contraste, porém, com a carência real das calçadas e das vias, a miséria, a
fome e a morte são representadas como alegorias em A pereira da tia miséria.
Tia
Miséria é uma senhora pobre e triste cujas posses se resumem a uma pereira.
Acompanhada por seu cão sem nome, a velha tenta proteger o patrimônio dos
furtos famélicos constantemente realizados pela vizinhança enquanto espera a
volta de seu filho Fome, que se extraviou mundo a fora. Quando a Morte, de
unhas negras e foice empunhada, se aproxima, a tia a engana e a aprisiona.
Miséria sobrevive, mas o custo de sua astúcia é que ninguém jamais morrerá.
As
pernas-de-pau, ponto de partida para a pesquisa estética e estruturador da
pulsão criativa do paranaense Núcleo Às de Paus, elevam e distanciam as
personagens em realidade tão próximas e familiares ao universo das ruas. As
estruturas se tornam prolongamento dos corpos, servem de muletas e dão vida a
bonecos manipulados pelos atores.
Também
promove o distanciamento a composição em versos da dramaturgia de Luan Valero,
baseada em um conto popular espanhol. A musicalidade da palavra rimada foi
sensivelmente refinada pelas canções executadas em cena. Destacam o tom poético
do texto os belos arranjos de Eric D’Ávila, nos quais instrumentos percussivos
somam-se às vozes afinadas da trupe – ainda que, vez por outra, não se alcance
o volume ideal para o ar livre. A direção da obra é assinada pelo grupo.
Ator
do Núcleo Às de Paus em apresentação no Recife
Nada
como subverter o tempo frenético e a atmosfera da rua inundando-a com a
dramaticidade e a cadência de uma narrativa mais complexa. Há versos cantados
que soam como mantras e cumprem mesmo o papel do comentário brechtiano:
O
que é desprezível
Não
se deve desprezar.
O
que é invisível
É
preciso enxergar.
Digo
de antemão
Esta
é a canção
Do
universo em expansão.
O
Ás de Paus, oriundo das salas de ensaio da Escola Municipal de Teatro de
Londrina e representante da novíssima safra paranaense, parece herdar a medida
da mistura entre erudito e popular tão cara ao Grupo Galpão (MG) e aos Clowns
de Shakespeare (RN). A pereira da tia miséria (2010), seu primeiro espetáculo,
foi agraciado com o Troféu Gralha Azul, importante premiação da cena teatral no
Paraná, e participa em 2013 do Festival Palco Giratório, promovido pelo Sesc
nacional, sendo levado a cidades de todo o país.