quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Critica - Em Respeito à Dor por Valmir Santos

Sísifos rebelados

Um espectador levantou na segunda fila, deu as costas, pisou o corredor e rumou à saída quando a atriz Pietra Garcia defendia, por meio de uma das figuras do espetáculo Em respeito à dor, o direito de poder fazer tudo que lhe dá na telha, inclusive desistir... Não se sabe se o homem desistiu. Ele pode ter se retirado por algum motivo e retornado à sala, fileiras atrás. O primeiro trabalho da Karma Cia. de Teatro, em dois anos de trajetória, indica pressupostos de um pensamento artístico provocador. Não há vez para o lugar-comum da ditadura do entretenimento, do conteúdo inofensivo, da subserviência ao aplauso.

O trio que está em cena expressa ambições mobilizadoras, sobretudo quando manifestadas por jovens dispostos a problematizar sua prática, seu pensamento, sua época e seu mundo para além das querelas provincianas ou tradicionalistas.

Pietra contracena com Leandro Cardoso e com o também dramaturgo e diretor Mauro Filho. De largada, os movimentos e as ações corporais reafirmam consciência de espacialização correlata à carga existencialista do texto e à sobriedade da encenação. Gestos, entonações e cores acinzentadas amparam os questionamentos e as crises do “eu” e do “outro”.

O liquidificador antimonotonia de assuntos permite desconfiança, até que a sensação se desfaz lá pelo primeiro quarto da apresentação e o projeto finca o pé para dizer a que veio. A autoajuda, o apelo publicitário, a receita de sucesso, o flagelo social, as variações de anestesiamento, a hipocrisia e toda uma agenda de indignação, íntima e cidadã, é colada às cenas manejadas pelo princípio da tríade que rege a montagem.

Três atores, três cubos em madeira inteiriça servindo ao espaço cenográfico e três totens de lâmpadas fluorescentes triangulando ao fundo e nas laterais do palco. A operação da luz fria é feita pelos atores. A simplicidade (ou seria rusticidade?) dos aparatos escondem o modo como eles são estrategicamente acionados e subsidiam as vozes que vagam na contramão das etiquetas e dos bons-costumes.

O caráter manifesto da palavra falada ou escrita convive com instantes de silêncios e as demandas coreográficas. Apesar da potência da gestualidade em várias passagens – eficiente no alinhamento dos braços em punho, símbolo caro que poderia ironizar aquela loja de varejos que replica a Estátua da Liberdade –, ela chega a ficar a reboque do verbo – como na recorrência com que os corpos dão a ver o esforço de “empurrar” (e aqui a metáfora é vasta) apoiando-se nos cubos, elementar.

Mas a mesma imagem de seres a “empurrar” resume as inaptidões, o cansaço, ao mesmo tempo em que diz algo sobre a necessidade de resistir tal qual Sísifos sublevados. Uma juventude avessa à desesperança e que reage aos abscessos da sociedade. Sem essa de conformar-se com a inutilidade de rolar a pedra até o alto da montanha.

Os fragmentos de sensações e espasmos da obra deixam um rastro sobre certo Joãozinho, sujeito que é narrado por Pietra Garcia e aos poucos ganha feições. Suas pontuações dão um corpo e uma alma às pinceladas expressionistas de Em respeito à dor.

As três atuações ainda se ressentem de aspectos laboratoriais, uma rigidez possivelmente influenciada pelos temas que o espetáculo encara. Sente-se falta de distensão. Pietra Garcia denota trabalho de voz e olhar intenso, ela que dá corpo e alma a Joãozinho sem representá-lo.

Todos estão na esteira da não linearidade, com intenções lacunares para que o público preencha de acordo com seu repertório de vida e de contato com as artes cênicas. Sentidos livres.

Ainda é cedo, mas tudo leva a crer que a Karma não veio à luz por acaso no mês posterior às jornadas de junho de 2013, destinada a celebrar sua inconformidade pensando e praticando arte.


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