A
disputa de presenças e o lugar do teatro
Quando
escreveu a peça A voz humana (1929),
o francês Jean Cocteau rebatia quem o acusasse de instrumentalizar seus textos
com “estruturas maquinais”. Pois acabara de testar uma pegada mais essencial
com um monólogo. Num quarto desarrumado, uma mulher aguarda a ligação
telefônica do amante que recém a abandonou. Coube ao dispositivo mediar a
oralidade, a escuta, os silêncios e o sentimento amoroso em pedaços. Virou sua obra
mais montada ao redor do planeta. Oito décadas depois, Odiseo.com sugere que o músculo da voz expandiu para o corpo
inteiro e vaga pela rede mundial de computadores materializando os rearranjos amorosos
sob os mesmos intangíveis mistérios da paixão.
O
espetáculo conjuga outros formatos de relação e de percepção da arte a partir
de ferramentas velozmente incorporadas na pele e na alma de quem vive nas
cidades médias urbanas. O edifício teatral, o palco, a plateia, a coxia, os
refletores, enfim, essas convenções inexistem por aqui. São as alteridades da
comunicação e a discussão da qualidade de atenção (leia-se presença) nos
relacionamentos, em todos os níveis, que atraem para a arena dessa navegação
antiespetacular, geradora de experiências virtual e presencial imersivas graças
à tessitura dramatúrgica para lá de expandida e convicta das janelas que a
palavra abre por si mesma.
O
código mais assimilável talvez seja o do clássico mote da triangulação dos
amantes (ele e ela) e da mulher dele. Três situações combinam planos ficcionais
captados por webcam em tempo real (também subvertido lá pelas tantas) e cujas
ações transcorrem em três distintos lugares. Ao cabo, a conexão por Skype é pulsão
desse sistema cênico-tecnológico que opera sobre os afetos através da imagem e
da fala.
Em
Itajaí, vinte espectadores roçam os ombros um no outro, bem instalados, para
acompanhar, na sala de um sobrado, no bairro São Judas, a intimidade à
distância entre a cantora Elisa, amante brasileira que faz dali sua casa, na
atuação de Milena Moraes, e o executivo argentino Ulises, hospedado em algum
hotel dessas cadeias globais, talvez em Pequim, na atuação do ator Juan Lepore,
que também abriga um pequeno público em sua casa, em Buenos Aires.
A
terceira figura a pontuar essa história é Laura, de quem se saberá pouco, mas com
a qual ele é casado e divida o mesmo teto na capital argentina, sob atuação da
chilena Amalia Kassai, moradora em Bremen, na Alemanha.
Cohabitantes
desse percurso, os espectadores brasileiros e argentinos não têm diferença no
fuso horário. Já o relógio local alemão está adiantado cinco horas. Porém, a
participação de Laura se dá apenas no ambiente virtual, isenta de contracenar
ao vivo com a audiência ao lado.
A
observação crítica aportada desde o olho a olho com Milena Moraes constata como
ela sustenta o campo da intimidade sem esmorecer, tendo por testemunhos 20
pares de olhos e ouvidos colados proximamente à atuação. Estamos entre quatro
paredes e é como se ela de fato se encontrasse sozinha, desnuda em tesão e
apaixonada por Ulises. Está a anos-luz da paciente Penélope da mitologia grega,
assim como o trabalho escrito em colaboração pelo chileno Marco Antonio de La
Parra e dirigido por André Carreira não leva ao pé da letra o mito retratado na
Odisseia, preferindo tomar apenas
como pretexto a jornada do herói viajante que retarda sua volta a Ítaca em
função das aventuras e obstáculos enfrentados no caminho, levando sua mulher a
esperá-lo por anos.
Apesar
do aparato que a cerca e das infiltrações performativas – ao conectar o cabo do
notebook ao televisor de tela plana ou regular o volume à maneira do
contrarregra –, Milena reflete agudamente os conflitos de Elisa preservando a
instância do dramático. Estirada no sofá-cama, deslocando-se até a cozinha ou
ao banheiro, subindo as escadas para tomar banho no que se presume a suíte (em
muitas cenas a atriz está oculta), atendendo sua mãe ao celular, o fato é que o
público sente sua presença permanentemente, ausculta seu coração.
Ressalva-se
que as sincronias não resultam virtuosísticas; pausas e vazios preenchem
igualmente.
As
reações de Elisa ao discurso titubeante de Ulises na webcan tornam a presença
dele na tela igualmente poderosa nos jogos eróticos, nos rompantes, nas
solidões. Ele tem dois filhos e não para em casa, vive nas nuvens, viajando a
negócio. Ela é mãe de uma filha, está em processo de separação e nutre
expectativa de que Ulises também deixe Laura. A introdução desta na narrativa causa
uma guinada temporal e os diálogos desviam para o campo da memória. Do mesmo
modo, as mutações dos figurinos de Elisa e Ulises – nomes que se tocam –, da nudez
às roupas sociais que os devolverão às ruas, também são indícios de que o real
é construído enquanto o tempo das falas e lembranças pode se mover em direções
outras.
Entre
as interfaces que desdobra, Odiseo.com
oferece uma experiência limítrofe da representação em flerte deliberado com conceitos
da instalação e da performance. Nada de novo com as desterritorializações e
experimentos de fronteiras. Chega a ser prosaico o modus operandi dominado pela maioria da assistência que depende da
banda larga ou fibra óptica, ao sabor da precariedade dos serviços de
telecomunicação. Em vez do rasgo tecnológico, sobrepõe-se a valorização do
ator. Não há a mínima possibilidade de se tropeçar em fios soltos neste
emaranhado digital, carnal e desejante disposto de forma clara e pungente, a
ponto de não perturbar a vigília ou o sono do “Jazz”, o cão do dono do sobrado
anfitrião, deitado ao pé dos espectadores durante toda a sessão. A parceria do Grupo
Teatral (E)xperiência Subterrânea, de Florianópolis, com o Centro
Latinoamericano de Creación e Investigación Teatral, da Argentina, ora ganha ares
de trama de telenovela, pela familiaridade temática, ora atalha com a tensão dos
filmes de John Cassavetes. É o teatro defendendo seu lugar na disputa de
presenças.
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