terça-feira, 11 de agosto de 2015

Critica - Quase Tudo no Timing por Luciana Romagnoli

Timing is the answer to success.
“Timing”, de Kevin Johansen[1].

O fator matemático e o fator humano

“Com Certeza”, “Palavras, Palavras, Palavras” e “Variações sobre a Morte de Trotsky”, as três peças curtas do dramaturgo norte-americano David Ives conectadas no espetáculo “Quase Tudo no Timing”, da Sua Companhia, de Itajaí, foram publicadas no Brasil em um único volume intitulado “Tudo no Timing”. O “quase” entra em cena, então, como o fator humano indomável agindo sobre a exatidão matemática da dramaturgia adaptada.
Gestada como um jogo matemático de variações – à semelhança da Teoria dos Muitos Mundos, segundo a qual para situação abrem-se dois mundos paralelos nos quais cada resultado possível se realiza –, a primeira cena leva ao extremo a precisão operativa. Marcelo Marquettti, Leandro Magalhães e Adriano Magalhães cumprem uma espiral de variações bruscas de um diálogo entre dois desconhecidos num café, com timing perfeito, que acentua o efeito cômico. Somam ao jogo de linguagem ainda outro com o espectador, concedendo-lhe a escolha dos gêneros que formarão o casal de personagens, tangenciando uma questão urgente de direitos humanos. Dessa interação direta dos atores com a plateia vem a imprecisão, que humaniza a racionalidade rigorosa da comédia arquitetada por Ives.
A cena sobre a morte de Trotsky repete a presteza da primeira, acrescida de ironia sobre a história política mundial e de um senso de absurdo, especialmente ao brincar com a impossibilidade de que um indivíduo possa ter consciência da perspectiva histórica de seus atos. Por usa vez, “Palavras...” parece ainda um tanto obscura para o grupo, seja na construção do ritmo (é o único não estruturado em variações combinatórias), seja por uma compreensão maior da ácida crítica social contida na fábula sobre a probabilidade matemática de um grupo de macacos datilógrafos escrever um dia, por acaso, “Hamlet”.

No tom geral do espetáculo, a crítica de viés operário depreendida dos dois últimos textos é sobreposta pela pegada pop e irônica sugerida no primeiro. É uma escolha pela comunicação viva e direta com o público, que de fato se concretiza. Mesmo que alguns momentos gerem a sensação de que se cumpre uma suposta dívida cômica com a plateia, o humor – irônico, sarcástico, debochado ou patético – dispensa concessões para encontrar seu espaço.
Música e referências cinematográficas contribuem para constituir a atmosfera descontraída, assim como a própria energia dos atores, desde o preâmbulo dançado até as discussões sobre como construir a próxima cena. Se as fábulas de David Ives ocupam o centro das atenções, as margens são invadidas pela encenação da encenação, ou seja, pelo compartilhar com o espectador dos mecanismos e bastidores da construção das cenas escritas pelo norte-americano – autor também de “A Pele de Vênus”, filmado por Roman Polanski e montado por Hector Babenco como “Vênus em Visom”.
É recorrente no teatro contemporâneo a cena que se arma em palco seminu, delimitado por um cercado de espectadores próximos o bastante dos atores para que haja afetação física direta. No chão, além das marcações, poucos objetos móveis. O microfone e o computador para operação de som e luz nos cantos, à vista. “Quase Tudo no Timing” investe nessa configuração – como também já foi feito pelo grupo Magiluth, do Recife, só para ficar em um exemplo com traços estéticos em comum, entre os quais certo deboche e a forma aberta de manejar o espaço cênico.
Chamo a atenção para essa coincidência não enquanto fórmula, mas, sim, como um tipo de concepção do palco análoga à tela em branco na paiting action. Ou (se a primeira comparação soar muito restritiva em tempos de hibridismo de linguagens) como um espaço vazio sobre o qual quase tudo é possível construir. É este o ponto nevrálgico: o processo de construção exposto ao público em paridade de importância com a fábula. Valorizar o processo em vez da obra acabada, mostrar-se fazendo, responde a uma ética antiespetacular do acontecimento teatral como um fazer coletivo, que desvela escolhas, idiossincrasias e falhas.
Em grande medida, trata-se de uma recusa à ilusão e à catarse própria da sensibilidade contemporânea. Embora não se possa dizer que a ilusão seja abolida – ela se reinventa, pois o jogo de improviso e espontaneidade depende do efeito de real, por vezes representado, tornando muito mais complexas as noções de realismo e ilusão. Pois é nessa tensão entre a representação e a presença que trabalham os atores da Sua Companhia. Marcelo Marquettti, mais identificado a uma atuação representativa; Adriano Magalhães, ao performer com tônus de presença.
São diferenças que aparecem especialmente quando atuam como macacos: Marcelo constrói o personagem com um registro vocal específico; Adriano concentra na movimentação corporal a citação ao símio e mantém na fala o tom do performer. Numa zona de trânsito entre os dois, Leandro Magalhães ainda mantém um vestígio representativo quando experimenta a espontaneidade, mas realiza a interpretação mais nuançada do espetáculo ao assumir a fala da mulher de Trotsky, no limiar delicado entre o aparecimento da personagem e o desaparecimento do ator.
Ainda que essas variações de registro de atuação de algum modo já estejam inseridas dramaturgicamente, talvez possível elaborá-las mais conscientemente para reforçarem o jogo do performer com a representação, que parece ser a matéria mesmo do espetáculo.





[1] Trilha sonora sugerida.

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